A culpa é do calor, próprio da época e que colabora para o sem sentido destes dias. Tudo corre devagar, anestesiando emoções, fazendo com que o tempo não seja contado em horas, mas nas sombras dos prédios que avançam e se esticam pelas ruas, contornando as calçadas, engolindo as copas das árvores, improvisando desenhos nas construções vizinhas.
O silêncio é verdadeiro e intenso. Desconfio que o bater dos cílios possa ecoar um som que se propaga até o infinito. Mesmo os cachorros estão calados e sumidos. De repente meu mundo, aquele cheio de carros e motos, gente transitando por todo lado e com hora marcada, resumiu-se num apartamento silencioso. Os sons comuns como o do aspirador de pó, tornaram-se algo com decibéis ensurdecedores. A geladeira, sempre quieta, de tempos em tempos passou a dar um estalo que antes desconhecia. A rede vazia, ao balançar movida pelo vento, incrivelmente, geme. O bater de uma porta outro dia, me causou estremecimentos de susto.
Em minhas piores projeções sobre o futuro, jamais imaginaria viver o que vivo hoje. Esta rotina vazia de expectativas, de acontecimentos, de surpresas. Nem lavar a varanda, nem limpar o chão, nem passar hidratante no granito das pias, nada disto mais faz sentido. Minhas plantas acompanham sem interesse quando lhes coloco água. O que antes, na correria dos dias, lhes provocava ansiedade para que as aguasse, hoje já sabem que isto faz parte da rotina.
Antes, não tinha tempo para conversar comigo, hoje converso e dou boas risadas quando conto alguma piada. Olha que nunca fui boa em contar piadas, mas sempre há um momento de aprimorar. O pior é que às vezes puxo aqueles assuntos que não gosto de falar. É quando a memória insiste em lembrar o passado — você lembra o que aconteceu naquele dia?
Mesmo não querendo, os fatos vão surgindo e a tristeza envolve a conversa. Nestas horas, tenho minha rota de fuga e corro para debaixo do chuveiro. Chorar com água escorrendo pelo rosto é um excelente paliativo, as saudades doem menos.
Evito olhar minha imagem refletida nos espelhos, pois passei a ver uma figura branca, com olheiras azuladas que dificilmente lembra aquela que vivia bronzeada e que para justificar os excessos da exposição ao sol, argumentava que era a descendência indígena que permitia toma-lo em qualquer horário e intensidade.
Vivo o tempo presente, mas por mais que fertilize a imaginação, sempre parece irreal, sem futuro. Não há expectativas de acontecimentos, não há o fascínio pelo inesperado, nada que reacenda um brilho para justificar a vida. Nem falo a palavra tédio, pois é algo bem maior do que isto.
Explico a mim mesma que algum ensinamento há de vir disso tudo. Em todas as situações passadas, onde o sofrimento foi intenso, questionava diretamente a Deus e perguntava se precisava mesmo passar por aquilo. ELE inabalável, me cercava de anjos e respondia, aguarde, não deixe o desânimo a abater. Sempre depois, a compreensão surgia, as dores acabavam, o sofrimento abrandava e eu O agradecia.
Certamente hoje, a situação não é tão intensa em sofrimento e também tenho inúmeros meios para atenuar a passagem do tempo. Sei que sairei desses dias mais conhecedora de mim, mais ciente dos caminhos que quero percorrer, mais tolerante comigo, mais evoluída para entender que é impossível ser feliz sem me condoer com a dor dos outros, sem estar proporcionando a alguém, conforto, afeto, atenção.
É noite e os prédios vizinhos estão todos fartamente iluminados, sento na rede e ela para de gemer. Olho em volta e isto me mostra que a vida pulsa em cada um daqueles apartamentos. Se todos nós nos unimos neste consciente confinamento, foi para um bem maior, que é o de dar continuidade à vida, à nossa, a de nossos familiares, amigos e dos desconhecidos que habitam este maravilhoso mundo, momentaneamente conturbado.
Então, paciência e esperança. Um dia isso passa.