Travessia: aquele constante entrelugar. O mantra. Entre uma ponta e outra da vida, mas não somente. Entre mundos, entre vidas, entre instantes, entre dias, entre noites. Deixar, ficar, voltar, permanecer.
Tudo travessia.
(De "Todo o tempo que existe")
Tudo travessia.
(De "Todo o tempo que existe")
No seu livro Todo o tempo que existe, Adriana Lisboa, Belo Horizonte: Relicário, 2022, ensaio de caráter autobiográfico, fala da sua experiência de luto quando da perda dos pais, em curto intervalo de tempo. Entre uma perda e outra, longos passeios pelo Jardim Botânico e devaneios sobre a existência.
Nesse ensaio, Adriana faz inúmeras referências literárias e budistas, dentre tantas (Chico Buarque, Philip Roth, T.S Eliot, Julian Barnes, muito especificamente a três escritoras que também me marcam: Rosa Montero; “Para viver temos que nos narrar”; Marguerite Duras: “escrever é tentar saber o que escreveríamos se fôssemos escrever, e Joan Didion: “O denominador comum do que vemos é sempre, de forma transparente e desavergonhada, o implacável ´eu´.” Adriana dialoga com essas autoras, ideias e conceitos sobre a arte de escrever, narrar e experienciar fatos das perdas, memória, autobiografia, lugares e existência: “O relicário é um objeto pequeno. Esquecer, é, também, libertar e me libertar. Esquecer é poder lembrar.”
E como um livro puxa outro, tinha nas estantes O ar que me falta: História de uma curta infância e de uma longa depressão, de Luiz Schwarcz, editor, escritor, e marido de Lilian Schwarcz, historiadora/escritora que muito admiro e sigo disciplinarmente pelo Instagram.
O ar que me falta, é sobre o luto também, da perda do pai do Luiz. Sobre a culpa principalmente, de uma família atropelada ferozmente pela segunda guerra mundial. O seu pai, húngaro, conseguiu escapar, sozinho, de um trem a caminho do campo de concentração, deixando o pai, avô do autor, no vagão, em direção à morte. A mãe, croata, teve de decorar um novo nome, falso, quando ainda criança, para embarcar para a Itália.
Dois anos depois, vão se encontrar no Brasil, e esse passado triste irá persegui-los vida afora. Filho único, Luiz, por tabela se sente responsável a expurgar a culpa do seu pai por ter fugido sozinho: “aprendi o sentido da palavra ´culpa´ desde muito jovem, como algo que fundava minha existência,...Percebi, mesmo sendo bem pequeno, que não conseguiria garantir a felicidade do meu pai, já ciente de que esta seria, para sempre, a mais importante missão da minha vida. Missão que fracassei por completo.” Esse lugar de falha/falta irá lhe causar angústia por toda a vida, lhe tirando o ar, sintoma tão devastador da síndrome do pânico, que tão bem conheci, em momentos limites da minha vida, lá no início dos anos 80, e quando da doença e morte do meu pai nos anos 90.
O que salvou Luiz? A leitura, a música, o colecionismo, e o futebol que, de alguma forma, preencheram o vazio da melancolia e de um diagnóstico mais tarde conhecido: Personalidade Bipolar. A sua vocação nasceu na beira da cama materna, ao longo da demorada recuperação da sua mãe, Mirta, e das suas visitas às livrarias, e “do ato de tatear e cheirar os pacotes com livros encadernados que ela recebia com tanto prazer.”
Nas sua falta de ar, Luiz, relata sem pudor, as suas fragilidades emocionais, a sua infância, o bullying na escola (foi Luizinho e Luizão), seu acanhamento amoroso para com as mulheres, e declara despudoradamente:”...foi com a Lili que de fato aprendi o que é amar.” Tem coisa mais linda?! Radical de personalidade, perfeccionista e dono dos resquícios da melancolia, o excesso de segurança, vão ser determinantes no seu trabalho como profissional de edição e fundador da Companhia das Letras. E permeando tudo, a sua incapacidade/autocrítica para escrever ficção, sempre tentando a literatura, e se culpando por uma falsa erudição, típica de um editor, ressaltando a dificuldade em construir personagens complexos e pela falta dos detalhes tão importantes para a verossimilhança de uma boa narrativa. Esse homem conturbado pelo passado do pai e do avô, diz que a obediência e o silêncio marcaram boa parte da sua vida. E que a raiva e a culpa são igualmente fortes e incontroláveis.
Luizinho e Luizão, segundo Luiz, dois apelidos que assinalam a cisão da sua personalidade bipolar. Luiz comparava a depressão a um cabide, onde qualquer mau pensamento podia se acomodar. Metáfora cruel e irônica. Achei muito interessante e igualmente cruel, quando ele fala do seu estado de mania, criando realidades paralelas, sempre mais fantasiosas que concretas, e que a sua cabeça não conseguia viver no presente, pois nele não existia perfeição: “no futuro há sempre mais espaço para ilusões.”
Domingo foi Dia dos Pais, eis aqui dois trabalhos literários sobre o luto pela perda do pai e sobre as consequências destrutivas que esse luto, culpa e outros sentimentos, podem nos acompanhar tristemente vida afora.