No silêncio da madrugada de Arara, o galo cantou repetidas vezes e recordei tantas ocasiões semelhantes quando morava no sítio. Acordado por esse canto do galo madrugador bem próximo, tentei descobrir de onde vinha seu cantar, como fazia no tempo de menino camponês, enquanto dormia o sono dos justos.
Três vezes o galo cantou. Sentia sua presença perto da casa de mamãe, onde dormia. Tão perto que me pareceu familiar, como se estivesse no terreiro de minha infância.
Em Tapuio, muitos galos cantavam ao mesmo tempo, numa repicagem que dava gosto escutar. O galo de nosso terreiro imitava o que estava no poleiro do vizinho, o que não incomodava papai, um madrugador contumaz que apreciava o quebrar da barra por entre as serras, porque nesse momento saía para caminhar pelos arredores do curral e aceiros dos roçados.
No meu sítio de outrora, como poetizou João Cabral, os galos teciam a manhã; cada um apanhava o canto do outro espalhado pelos terreiros das casas vizinhas, sempre perto umas das outras, tão perto que escutávamos as suas pelejas. Todos acompanhavam os gritos dos vizinhos, até que os “... outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galos...” para tecer a manhã. De modo que, cada um com seus cantos, teciam nossas manhãs. Como no dizer do poeta pernambucano, “A manhã, toldo de um tecido tão aéreo” era semelhante ao que agora presenciava na cidade onde vivi a minha juventude.
Mas o galo solitário de Arara tecia sozinho a manhã para mim, um clarear do dia que abria as portas à vida e à poesia recheada com a brisa que se esparrava por toda a extensão do pensamento. Como o tempo revela outras paisagens, o galo da madrugada ararense entrelaçava a manhã, mas não tão solitário porque eu escutava seu cantar. Muitos poetas, sozinhos, às vezes, são cantores despovoados de sentimentos que tecem suas manhãs intermináveis de sonhos e quimeras. Enquanto a luz da manhã é transformada em balão, o poeta e o galo cantam para a amada.
Na madrugada de Arara, aspergida pela garoa preguiçosa, o galo me acordou. Até que gostei. Um canto solitário, como era solitário o poeta que desanuviava as antemanhãs para preparar o pão que chegava cedinho à mesa das famílias no seu tempo de adolescente.
Estava tanto tempo distante. Há anos não escutava o galo cantar tão perto e persistente como na madrugada que me acolheu o teto onde minha mãe agasalhou seus filhos, em épocas passadas.
Fico a imaginar se o galo de agora tinha o mesmo lirismo dos galos de minha infância. Talvez os galos de Tapuio tenham sido mais românticos, se é que galo possa ser considerado devaneador.
Tenho a impressão de que os galos madrugadores são como os poetas boêmios que sofrem quando o dia amanhece. Quando repicam suas cantorias, madrugada adentro, certamente desejam despertar suas amadas. Um galo sozinho não faz verão. A madrugada se completa com a entoada dos outros galos e com a viola plangente do cantador anônimo.
Naquela madrugada de minha infância, um galo chamava o outro para juntos evocarem a manhã, mas agora, como o poeta, o galo deste amanhecer está sozinho tentando anular a escuridão. Um galo chama o outro para anunciar um novo amanhecer, mesmo que este não responda.
Os galos andam na minha memória, estão comigo e catam os grãos das palavras. Os galos do poeta Cabral, os galos de Tapuio e o galo de Arara, que escutei na alvorada fria, dão prumo a minha poesia. Poesia que imita o canto dos galos.