O Estado, a Associação, os Municípios
Eram mortos. De todo aquele mundo
Restava um mecanismo moribundo
E uma teleologia sem princípios.
“As Cismas do Destino”, versos 409-412
“As Cismas do Destino”, versos 409-412
Degradação, lixo, entulhos, calçadas obstruídas, carros estacionados nos dois lados da rua, estreita para os tempos atuais; um tesouro arquitetônico abandonado, deixado ao sabor da voragem do tempo, revelando o desleixo, o descaso, nas ruínas que se multiplicam ao longo da via. Eis uma imagem real e triste do que hoje é a Rua Duque de Caxias, antiga Rua Direita, antiga Rua São Gonçalo, vista em rápido curso, do seu início ao seu término.
Fiz um passeio rápido, tirando algumas fotos, com o intuito de tentar identificar os lugares onde teria morado o poeta Augusto dos Anjos, entre os anos de 1908 e 1910, quando viveu na Paraíba, nome da atual João Pessoa. Verifiquei tratar-se de uma tarefa que beira a impossibilidade: há casas sem número, a numeração não segue, necessariamente, uma sequência, e, com certeza, a lógica da numeração da época de Augusto dos Anjos não é a mesma da época atual.
Augusto dos Anjos morou defronte à casa de Ademar Vidal, situada à Rua Direita número 1 (O outro Eu de Augusto dos Anjos, Rio de Janeiro, José Olympio, 1967, p. 10). Depois a família de Augusto dos Anjos se mudou para um sobrado contíguo à residência de Ademar Vidal, a quem o poeta deu aulas particulares, como único aluno, entre outubro de 1909 e junho de 1910. A Rua Direita começa no cruzamento com a atual Rua Vigário Salem, que fica diante do Cruzeiro da Praça São Francisco. O seu término se dá no prédio da atual Assembleia Legislativa, tendo ao lado oposto, a Rua Padre Gabriel Malagrida.
O observador, se posicionando de frente para o Cruzeiro do São Francisco, terá, à sua esquerda, os números pares, e, à sua direita, os números ímpares. O número 1 referido por Ademar Vidal, corresponderia, então, à primeira das duas casas que constituem, atualmente, a Academia Paraibana de Letras. A casa em frente à de Ademar Vidal, cujo número não foi por ele especificado e em que morou o poeta, seria talvez a atual número 8, onde começa a Duque de Caxias. Se o poeta se mudou para um sobrado contíguo à casa de Ademar Vidal, como afirma o memorialista, é provável que corresponda ao atual número 37, a segunda casa a compor a Academia Paraibana de Letras, nos dias de hoje.
Os dois edifícios que dão início ao conjunto arquitetônico da Rua Direita, a partir do Largo São Francisco: a APL e a Casa nº 1, onde residiu Ademar Vidal ▪ ImagensMilton Marques Jr
Ademar Vidal é enfático ao se referir à contiguidade das casas, a ponto de fazer alusão aos mamões de corda, do mamoeiro macho da casa do poeta, que caíam sobre o muro de sua casa (p. 17). Existe aí, portanto, a possibilidade de Augusto dos Anjos ter morado no prédio que hoje abriga a APL, no espaço exatamente onde se encontra o memorial Augusto dos Anjos. É possível, mas ainda não é provável...Imagens do edifício situado no início da Rua Direita, onde funciona atualmente a Academia Paraibana de Letras ▪ Acervo de Petrônio Souto
O problema da identificação das residências de Augusto dos Anjos se agrava, quando Ademar Vidal faz referências a ter tido aulas no número 93. As aulas teriam sido anteriores a mais uma mudança do poeta, depois do seu casamento com Ester Fialho, para o final da Rua Direita (p. 22):
“A diferença de luminosidade entre os dois salões em que ia receber ensinamentos se mostrava chocante: na casa de nº 93 tudo era escuro, entrando pouca claridade, mas assim não acontecia com a outra de agora, cheia de janelas altas e abertas, as portas escancaradas, entrando luz solar por todos os lados.”
O número 93, contudo, não pode ser contíguo ao número 1. Pela numeração atual, o 93 não existe. O mais perto disso é o casarão número 81, que se situa na esquina da Duque de Caxias com a Rua Conselheiro Henriques, dando acesso à Igreja da Misericórdia. Do outro lado da rua, encontra-se um casarão amarelo, que bem poderia ser o famoso número 103, citado no primeiro verso do poema “Noite de um Visionário”. Os dados, que temos atualmente, dão margem a uma especulação e talvez expliquem a referência de José Américo ao Beco do Carmo, onde Augusto dos Anjos teria morado (“Augusto dos Anjos, o Homem e o Poeta”, in: Eu e eles, Rio de Janeiro, Nosso Tempo, 1978, p. 172-173). Tendo o poeta morado no número 103, levando-se em consideração que este suposto número poderia ser a habitação que, hoje, se situa lado a lado, na Rua Duque de Caxias, na esquina da Conselheiro Henriques, comprovar-se-ia, então, a estada de Augusto dos Anjos no Beco do Carmo, como era chamada a Conselheiro Henriques.
Em conversa com Petrônio Souto, que possui um grande acervo sobre a nossa capital, ele chegou a confirmar que o casarão amarelo, situada na confluência da Rua Duque de Caxias com a Conselheiro Henriques, é o número 103, local onde funcionaria o Sindicato dos Trabalhadores dos Correios e Telégrafos. Pareceu-me, contudo, que já nada ali funciona, pois a placa do sindicato e o número já não estão presentes. A impressão que tive é a de mais um prédio abandonado... Depois, Petrônio Souto conseguiu de um amigo uma foto do casarão, em que aparecem a placa do sindicato e o seu número... 105. Como se vê, trata-se de um grande quebra-cabeça.
No prosseguimento do passeio, localizar o número 242 até foi fácil. Ele está lá, num sobrado em frente à atual Praça Rio Branco. Saber se o número corresponde ao local onde funcionou o antigo Clube Astrea é onde reside a dificuldade. A pista é que a propriedade da família, que serviu de sede ao clube, era um sobrado, conforme citado em cartas à mãe, datadas, respectivamente, de 29 de março e de 04 de junho de 1908 (VIDAL, p. 161 e 163). Mas nada pode se afirmar.
Rua Direita, ontem e hoje: edifícios localizados em frente à praça Rio Branco, onde funcionou o Clube Astrea, .
A localização do número 318, onde Augusto morou com Ester, depois de casado é uma demonstração do quanto a numeração se modificou. Na numeração atual, seria um sobradinho ao lado do “Terceirão”, cujo número está apagado. No depoimento de Ademar Vidal, ficava no fim da Rua Direita (p. 21), em frente ao Jornal A União, onde hoje se vê um casarão amarelo, na esquina da Gabriel Malagrida.A confirmação do número atual, no entanto, na nossa concepção, entra em confronto com os números do tempo de Augusto dos Anjos. Como o 103 atual pode ser o mesmo da época do poeta, se o número 318 está muito longe, situado no final da Rua Direita, onde hoje se erige um casarão amarelo, do lado oposto à Assembleia Legislativa, local onde funcionou A União, e que ficava bem em frente ao chalé em que Augusto dos Anjos foi morar, depois de casado com Ester Fialho?
Tentar decifrar estes endereços é como tentar pôr ordem no caos. Haveria duas possibilidades para ajudar na organização: a existência de documentos fotográficos da época – alguma coisa pode ser vista, mas não tudo, em Walfredo Rodriguez (Roteiro sentimental de uma cidade), e uma apurada investigação nos arquivos da Prefeitura para se constatar a mudança de numeração e identificar as moradas de Augusto dos Anjos. Diante do nosso proverbial descaso com a memória, com frequência jogada no lixo, acredito ser a segunda hipótese ainda mais inviável do que a primeira.
Que Augusto dos Anjos morou, viveu, ensinou, respirou, perambulou e circulou pela Rua Direita, é um fato inquestionável. Dizer com precisão em que locais ele residiu é tarefa a exigir uma documentação precisa. Os poderes públicos constituídos poderiam ao menos colocar placas, em vários locais da Rua Duque de Caxias, fazendo referência ao fato. Seria o mínimo a fazer, um primeiro passo, enquanto se trabalha para que surjam realizações efetivas, com o apoio de todos, principalmente da Academia Paraibana de Letras, a Casa de Augusto dos Anjos, e do Ministério Público, tendo o promotor Arlindo Corrêa como seu representante.
De qualquer sorte, este artigo tem mais o sentido de levantar a questão e, talvez, sensibilizar pessoas que possuam alguma informação inquestionável, de modo a ajudar a refazer o itinerário do poeta, na antiga Rua Direita, que deveria se chamar, por justiça, Rua Augusto dos Anjos.
À epígrafe deste trabalho, integram-se perfeitamente os versos de “Os Doentes” (415-418):
Contra a Arte, oh! Morte, em vão teu ódio exerces!
Mas, a meu ver, os sáxeos prédios tortos
Tinham aspectos de edifícios mortos,
Decompondo-se desde os alicerces!
O debate está aberto e espero que possa evoluir.