No fundo da gaveta a caixa gasta pelo tempo,
manuseada pelos anos e lembranças
desbotadas vida afora.
(Wania Amarante. Lembranças)
Minha cidade é margeada por coqueiros. Na parte mais baixa, correm dois rios, o das Cobras, pequenino, e o Seridó, que vai além das fronteiras do município. No alto, fica a Igreja do Sagrado Coração, no centro, a praça da matriz e a Igreja de Nossa Senhora da Conceição.
Já foi chamada Conceição dos Azevedo. Conceição por conta da padroeira, Nossa Senhora da Conceição; Azevedo pela família que deu origem à cidade. É ainda tão pequenina! Parece que ficou parada no tempo. Parafraseio o que disse José Américo de Almeida sobre Areia: É a mesma desde eu menina.
Em excursão feita ao Rio Grande do Norte nos anos 20 de século passado, Mário de Andrade fez esta observação sobre Jardim do Seridó: “Uma cidadezinha de Tarsila, toda colorida , limpa e reta. É um dos momentos de cor mais lindos que já tive neste aprendizado de turista.” Este registro se encontra no livro O Turista Aprendiz.
Foi nesta pequena cidade que vi o mundo pela primeira vez. Ouvi histórias contadas por Chicuta e por minha mãe. De Chicuta, recordo as histórias de cordel – Juvenal e o dragão, A princesa da pedra fina. De minha mãe, alguns contos que estão presentes em Contos Tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo - Joãozinho e Maria, A madrasta, este último recontado com o título A menina dos cabelos verdes.
Minha casa ficava situada na Rua Coronel José Tomás, 162. Era uma casa de esquina com muitas janelas, todas situadas na parte lateral. Eu me pendurava na janela e fugia para brincar na rua. Talvez minha paixão por pintar janelas tenha surgido desse período da primeira infância.
Costumava visitar Miana, a velhinha que criava gatos, e pedia a Novena, amiga da minha mãe, que fosse visitá-la, assim eu teria mais tempo para brincar na rua com as amigas, subir nos pés de fícus benjamina, popularmente fícus - benjamin, que ornamentavam os canteiros das ruas. A prefeitura mandava podar essas árvores e elas ficavam sempre bem uniformes. Gostava de me pendurar em seus galhos e ficar de cabeça para baixo. Era perigoso, mas para aquela menininha não existia ainda a consciência do perigo.
À boca da noite, a brincadeira era na rua. Os mais velhos colocavam cadeiras na calçada e conversavam sobre assuntos variados, as crianças, meninas e meninos, brincavam de roda, anel, peia, chicote queimado, toca. Lembro-me bem dessa cantiga:
Na mão direita tem uma roseira,
Na mão direita tem uma roseira
Que bota rosa no mês de maio
Que bota rosa no mês de maio.
Entrai na roda linda roseira
Abraçai quem mais gostai.
Entrai na roda linda roseira
Abraçai quem mais gostai.
A menina ou o menino que estava no centro da roda abraçava quem fosse mais do seu agrado e a brincadeira continuava até todos participarem. A professora e pesquisadora Maria de Fátima Batista, uma das organizadoras do livro Cancioneiro da Paraíba, registra uma versão um pouco diferente, sabemos que tanto os contos populares como as cantigas de roda variam de região para região.
Onde estarão as rosas em botão que enchiam de musicalidade as noites jardinenses? Certamente, como no poema Evocação do Recife, de Manuel Bandeira:
“(Dessas rosas muita rosa
Terá morrido em botão...)”
Havia na cidade duas figuras femininas que povoaram a minha infância - Conrada e Joaninha Barrigada. Conrada era pedinte, andava sempre com os cabelos desgrenhados, muito suja, gostava de entrar nas casas, descobrir as panelas e pedir comida, ficava zangada quando não davam alguma coisa para comer. Quando avistava Conrada, me escondia, tinha medo. Joaninha Barrigada era inofensiva, andava toda a cidade com uma sobrinha debaixo do braço, não abandonava sua companheira, fizesse sol ou chuva lá vinha Joaninha com sua roupa branquinha e a sombrinha. Para usar um eufemismo, direi que tinham pouco juízo.
Quando estava com cinco anos, deixei minha cidade e parti para viver outras aventuras, hoje restam essas lembranças antigas.