Importante é observar que o universo leibniziano é uma bem ordenada estrutura com amarração metafísica e ontológica, com elementos e ...

Leibniz e a contemporaneidade (parte 2)

pintura abstrata filosofia leibniz

Importante é observar que o universo leibniziano é uma bem ordenada estrutura com amarração metafísica e ontológica, com elementos e conceitos filosóficos ecléticos (platônicos, aristotélicos, agostinianos, tomistas, luteranos, calvinistas e da revolução científica do então mundo moderno). Além disso, a chamada “harmonia preestabelecida” ocorre por obra de Deus, hipótese metafísica com a qual arremata seu sistema especulativo (é a cereja do bolo leibniziano). É essa elaboração racional que garante a perfeita correspondência
entre as várias representações das mônadas e a realidade externa.

Com base no princípio de razão suficiente, outro conceito especulativo fundamental de seu sistema, Deus é, dessa forma, o único Ser necessário que existe, visto que Ele é o único Ser em que essência e existência coincidem, sendo Ele tanto fonte das essências como das existências. Em sendo Deus também perfeito, além de necessário, este mundo seria o melhor dos mundos possíveis[1] por Ele criado. Tal concepção metafísica, ontológica e também moral (porque Deus busca realizar o maior bem moral e a máxima perfeição possível) da realidade constitui o chamado “otimismo leibniziano” e foi objeto e infindas discussões e polêmicas por todo o século XVIII e, de certa forma, perdura até hoje, após várias correntes e abordagens filosóficas terem se debruçado sobre a existência de Deus e sua natureza.

As verdades da razão são as verdades contidas na mente de Deus, cujo oposto é impossível, são imprescindíveis e não obedecem à realidade, além de serem baseadas nos princípios de identidade, de não-contradição e do terceiro excluído, o que denota uma influência devastadora do racionalismo grego, ou da lógica clássica ou, ainda, da lógica formal aristotélica sobre o projeto filosófico de Leibniz. Em qualquer proposição verdadeira, o predicado está contido no sujeito, ou seja, toda verdade é uma verdade necessária, uma alusão ao “melhor dos mundos possíveis”.

Já as verdades de fato referem-se aos acontecimentos contingentes, cujo oposto não é impossível, porém, a partir do momento que passam a existir, têm a sua precisa razão de ser, baseadas no princípio de razão suficiente – de onde surgem diversos questionamentos já clássicos da filosofia leibniziana, como se Júlio César e seu exército pudessem, em um plano especulativo, não ter atravessado o Rio Rubicão, o que já nos traz de volta a premissa de que este é o melhor dos mundos possíveis, onde “nada acontece sem razão suficiente (nihil est sine ratione), provando, mais uma vez, o caráter cíclico do sistema especulativo leibniziano. Portanto, a razão suficiente última do universo é o próprio Deus, o mais perfeito dos arquitetos. Todos os eventos relacionados a César estão previamente no
“conceito de César” e já são objetos do entendimento divino sobre César em particular[2].

Leibniz reinterpreta o sentido de “reminiscência” platônica, estabelecendo que a alma conhece virtualmente tudo, o que caracteriza a sua doutrina de “inatismo virtual”, ou seja, o intelecto e sua atividade precedem a experiência, pois, como está proposto em Novos ensaios sobre o entendimento humano, “não há nada no intelecto que não tenha derivado dos sentidos, exceto o próprio intelecto”. Por conseguinte, as ideias são inatas e, no racionalismo leibniziano, o conhecimento advém da dedução racional e lógica, isto é, na acepção kantiana, seria como se proposições analíticas surgissem de um conhecimento a priori.

No que tange à questão da liberdade do homem, Leibniz busca um meio termo entre a visão de Spinoza, defensor da necessidade, e a ideia clássica do livre-arbítrio, ou seja, há um agir baseado na inteligência e na contingência do homem, mas os atos humanos, além de serem predicados incluídos necessariamente no sujeito (daí o conhecimento a priori baseado em proposições analíticas), são eventos já previstos e prefixados por Deus, o que denota uma forte influência da doutrina protestante, pois é inevitável a correlação desse ponto da filosofia leibniziana com a doutrina da eleição incondicional e da predestinação dos calvinistas, que advém da concepção agostiniana da graça divina. Em suma, tudo que acontece no universo ocorre, a rigor, por uma razão suficiente, mas o livre-arbítrio é admitido, isto é, há liberdade entre os vários elementos do mundo, porém é a razão que estabelece uma relação entre esses elementos,
baseada na lógica e na matemática, substratos fundamentais do racionalismo leibniziano.

Observa-se que o deus de Leibniz não é o deus da metafísica universal, como o de Kant, que é uma espécie de retoque final a uma teoria da natureza das coisas, não tendo, portanto, conexão com o Deus da Bíblia. O Deus de Leibniz certamente tem, a seu turno, de alguma maneira, essa ligação com o Livro Sagrado do cristianismo. De mais a mais, o pensador alemão responde ao questionamento sobre a existência de Deus utilizando o argumento ontológico de Santo Anselmo, somado a outros argumentos (a causa primeira de Aristóteles, depois argumentos derivados da verdade necessária e, por fim, o conceito de harmonia preestabelecida).

Para Leibniz, o destino escatológico do homem deverá consistir em um conhecer Deus em grau sempre maior, rumo a uma escala infinita de felicidade, traduzido em seu ideário de uma “Cidade de Deus”, que seria o Estado mais perfeito dirigido pelo monarca mais perfeito, no qual o universo moral estaria no universo natural). Há conceitos escatológicos contidos no cristianismo, no livro bíblico do Apocalipse, de João, que, de maneira metafórica, podem, de certa forma, casar-se com o sistema especulativo leibniziano. De qualquer forma, dentro dos juízos do filósofo alemão, temas como o arrebatamento, a primeira ressureição, o período de tribulação, a segunda vinda de Cristo e o reino milenar e o próprio conceito de eternidade ficam sem uma resposta concreta.
Notas Segunda parte de artigo apresentado pelo autor ao Mestrado em Filosofia, no Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba.

[1] Sobre esse viés fundamental do pensamento de Leibniz: “Mundos possíveis são, então, representações da existência conjunta de todas as substâncias que podem existir conjuntamente, isto é, são representações de conjuntos maximais de substâncias compossíveis” MARQUES, Edgar. Possibilidade, Compossibilidade e Impossibilidade em Leibniz. Revista KRITERION, Belo Horizonte, n° 109, Jun./2004, p. 180.

[2] Nesse sentido, é imprescindível a leitura do seguinte trecho, em obra fundamental de Leibniz: “Mas o próprio Deus, perguntarão, não poderia, então, mudar nada no mundo? Seguramente ele não poderia muda-lo agora, salvo usa sabedoria, pois ele previu a existência deste mundo e daquilo que ele contém, e mesmo porque ele tomou a resolução de fazê-lo existir; pois ele não poderia nem se enganar, nem se arrepender, e não é seu dever assumir uma resolução imperfeita que considerasse uma parte, e não o todo”. Ensaios de Teodiceia, 3ª edição. São Paulo: Estação Liberdade, 2017, p. 165.

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