De passagem certa feita pelo Louvre, avistei, por detrás de mil vidraças, um dos célebres Ovos Fabergé, que lá estava em exposição, emprestado do Krelim. No ensejo, sussurraram-me ao ouvido as nove musas em uníssono: tiveste muita sorte, mísero mortal. Pois o maioral da joalheria de todos os tempos, que produzira quase uma centena destes, nos mais nobres materiais que possa supor a vã filosofia, destinados aos presentes que Alexandre III, mandatário absoluto na Rússia czarista, costumava dar à sua amada esposa, Maria Feodorovna, legara pouquíssimos ao alcance de quem não se alinha
com Afrodite ou Apolo. A maioria, trancada a sete chaves em coleções particulares, faz salivarem de usura Harpagons diversos, porões afora.
E, acreditem-me, as musas, comme d'habitude, estavam certas; tenho imensa dificuldade de lembrar de artesania mais bela. Sua principal característica não é a suntuosidade, conquanto seja luxuriante nos resplendores divinais. O que nos provoca os sentidos, ao contrário, é precisamente seu minimalismo, que tangencia o lúdico, à beira do infantil. Não se revela de pronto; antes, esconde-se num disfarce pueril. Há, por assim dizer, um choque no observador. Trata-se, numa palavra, de uma joia perfeita, ricamente adornada, cuja aparência, a priori, é absolutamente prosaica: haverá algo mais despido de vaidade do que um ovo, um pequeno ovo?
Pois bem. Quando pensei que jamais botaria esses olhos que a terra há de comer noutro Fabergé, eis que, alguns dias atrás, como por milagre, insere-se delicadamente na minha estante, sem vidros à prova de balas, sem proteção alguma, um deles – e dos melhores. Não faço a menor ideia de em quais avaras arcas ele andava trancafiado esse tempo. Decerto esquecido num desvão da minha mediocridade, num escaninho da minha negligência intelectual.
Não ousarei aqui resenhá-lo. Outros, do naipe de um Crispim, o fizeram magistralmente, conforme os anais. Digo apenas do que ele me despertou, de mais íntimo. Rico, sem enfeites; intenso, sem soberba; comovente, sem pieguice. Espartano na embalagem, cristal no interior. Ouro e pedras preciosas retinindo pelas bordas, sem que se perceba de pronto. Cerrado, um frágil retângulo branco, um opúsculo rabiscado em algumas páginas. Aberto, um mundo de delicadas iluminuras que não cabem numa vida e que têm o condão de reproduzir todas elas, das gentes várias, nas aldeias imemoriais de Dostoievski, Gogol, Hugo, Graciliano, Zelins, Nassar e Kadaré.
Assim percebo “Retrato de Memória”, livro que acolhi afetuosamente em casa, para meu deleite e dos meus, da lavra precisa e escorreita desse joalheiro das letras, ourives das palavras, Hefesto das emoções, Gonzaga Rodrigues, cuja dolorida peleja para reconstruir o semblante paterno antes que se extravie nas brumas do tempo tem como cenário o vilarejo de Santo Antônio, cercado pelos nossos Urais: as “encostas sumarentas” do Brejo paraibano. Analogamente às maviosas peças produzidas pelo povo das estepes, às quais referi no prólogo deste modesto ensaio, a obra gonzaguiana desvela-se, para o extasiado leitor, lúdica, singela, e, a um só tempo, psíquica e simbioticamente complexa e arrebatadora, como sói acontecer com os clássicos universais.
Obrigado, Fabergé de Santo Antônio, pela generosidade de dividir conosco, seus admiradores e alunos, caprichosamente embalado numa casquinha de ovo, esse precioso protopai de todos nós, nariz aquilino, cabelo à escovinha e olhos expressivos, a cuja efígie guardada na memória recorremos nos breus da vida, à busca das lições que não aprendemos.