Passando pela porta de um colégio, me veio a sensação nítida de que aquilo era a porta da própria vida. Afonso Romano de Sant'Ann...

Diário de classe

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Passando pela porta de um colégio, me veio a sensação nítida de que aquilo era a porta da própria vida.
Afonso Romano de Sant'Anna, Porta de Colégio

Dou um mergulho no tempo e me vejo aluna do Colégio da Imaculada Conceição (Colégio das Damas), em Campina Grande. Nesse educandário de origem belga, fiz todo o antigo curso primário e ginasial. Na época em que fui aluna, o colégio só aceitava meninas, meninos apenas no curso infantil.

Um dos fatos marcantes desse tempo do curso primário era o exercício das composições. Uma vez por semana, a professora colocava um quadro em um cavalete retratando, geralmente, cenas rurais e as alunas
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Almanaque Melhoramentos, 1950s
Fonte: MLivre
escreviam uma descrição com base na cena apresentada. Era a hora do devaneio, de soltar a imaginação e criar histórias que iam muito além do visual. Os quadros eram da Editora Melhoramentos e este exercício foi muito comum nas escolas brasileiras até os anos de 1960.

A professora de Português, Madre Adelma, pedia que as alunas escrevessem a composição a partir desses quadros e que usassem um pseudônimo. Ela preferia corrigir os textos sem saber quem havia escrito. Cada semana eu inventava um pseudônimo diferente, às vezes era Tália, outras vezes Penélope (não sei explicar o porquê da escolha desses nomes gregos). O gosto pela leitura e pelo escrever me acompanhou desde cedo e os meus textos eram sempre selecionados para uma leitura em voz alta na sala de aula. Não gostava dos números, mas com as letras eu me dava muito bem.

As aulas de Matemática eram enfadonhas e eu me distraía conversando com as colegas, tendo sido expulsa muitas vezes da sala de aula por conta da desatenção e por atrapalhar as explicações da professora. Na minha concepção de criança, a professora era uma verdadeira megera, detestava a matéria e mais ainda a professora. Anos mais tarde, para homenagear meu irmão que cursava engenharia e me ensinava a resolver complicados problemas de matemática, escrevi o texto “A megera domada e meu professor inesquecível”.
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Fonte: MLivre
A megera era a professora de Matemática e o professor inesquecível era o meu irmão.

Houve um acontecimento no colégio que me deixou tristes recordações. Cursava o 3º. ano primário quando as professoras (freiras) pediram que levássemos livros evangélicos ou espíritas para serem destruídos. Eram livros proibidos e não deveriam ser lidos por alunas católicas. Na minha casa, havia livros da editora Santo André, uma editora evangélica, presentes do meu pai e levei para o colégio alguns desses livros que tiveram um triste destino — foram queimados em uma fogueira no pátio do recreio. Havia um que meu pai sempre lia à noite para mim – “Histórias para crianças”, era da mesma editora, esse escapou do fogo da inquisição e guardo até hoje nas minhas estantes de livros antigos. Felizmente não queimaram livros de Monteiro Lobato, mas não me recordo de haver livros desse escritor nas estantes do colégio.

Fui do tempo em que existia exame de admissão para passar para o curso ginasial. Nessa época, já mais taludinha, até mesmo as aulas de Matemática agora mereciam atenção. Ia fazer uma espécie de vestibular (exame de admissão) para ingressar no ginásio e precisava estar bem preparada. O exame de admissão compreendia provas escritas e orais, estudei tanto que ao fazer as provas orais sabia de cor todo o programa das cinco disciplinas: Matemática, Português, História, Ciências e Religião. Sim, Religião era disciplina que exigia prova, o colégio era católico.
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Fonte: MLivre
Fui a primeira da classe e recebi como prêmio a coleção encadernada da revista Tico-Tico e uma medalha com as cores da bandeira do Brasil. Foi o coroamento de horas e horas debruçada sobre os livros. Agora andava toda orgulhosa exibindo a medalha de 1ª. de classe.

Ainda quando cursava o 5º. ano, recebi injustamente um cartão amarelo. O cartão amarelo era uma penalidade atribuída às alunas que cometiam algum deslize disciplinar. Explico-me: não era permitida a troca de bilhetes entre as alunas durante as aulas. Recebi de uma colega de classe, Zuleide Almeida, um bilhete com a pergunta: “Quer saber de uma adivinhação que diz com quem a pessoa vai se casar?” Não houve tempo para a resposta. Madre Adelma ia passando no corredor e, através da janela aberta da sala de aula, me viu recebendo o bilhete. A freira entrou na classe abruptamente e nos levou diretamente para a presença de Madre Alice, conduzindo o amaldiçoado bilhete. Resultado: as duas receberam boletim amarelo que consistia em passar o domingo todo de castigo no salão de estudos do colégio. Entrava às sete da manhã e saía às cinco horas da tarde, a pausa somente para almoçar, sem recreio nenhum. Fui para o castigo conduzindo na minha sacola alguns livros. Li, reli e fiquei depois olhando para o teto do salão de estudos que ostentava a frase: “O dever antes do prazer”. Além de achar imerecido o castigo, sentia-me injustiçada, fui apenas receptora de uma mensagem que nem resposta tivera. Foi o dia mais longo da minha infância. Olhava para minha companheira de infortúnio e ficava com raiva, ela fora a causadora de tudo isso. Fiquei com essa mágoa da colega Zuleide.

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Fonte: Damas
As alunas bem comportadas e que não conversavam durante as aulas recebiam uma fita verde, eram alunas condecoradas. No primeiro ano ginasial, resolvi calar o bico e no fim do ano fui condecorada, agora exibia dois troféus – 1ª. de classe e a fita de condecorada.

Ser aluna exemplar durou apenas um ano, no 2º. Ginasial perdi o posto de 1ª de classe e a faixa verde de condecoração, fiquei um pouco relapsa nos estudos e Nisete Camboim arrebatou a medalha de 1ª. de classe. Foi uma pena!

O curso ginasial apresentava novas disciplinas: Inglês, Francês, Desenho, Latim, Canto Orfeônico. Professor Raimundo Gadelha lecionava Música e resolveu criar um coral com um grupo de alunas do colégio.
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MLivre
O teste para ser aprovada consistia em repetir as notas que ele tocava ao piano. Submeti-me ao teste e fui reprovada, e ouvi o conselho de quem entendi bem de música: “desista do canto, você não demonstra nenhuma tendência musical”. Ele estava certíssimo. Estudei piano durante alguns anos, mas sempre me faltou o dom musical.

Madre Alice era a mestra-geral, havia a Madre Superiora, Madre Dominique, uma freira belga que falava português com sotaque francês. Era muito educada. Madre Alice era o terror do colégio, temida por todas as alunas, falava alto, reclamava de tudo e a disciplina estava acima de qualquer coisa.

A professora de Francês e Inglês era Madre Emilie, que chamávamos Madre Emília, outra freira de origem belga. Diziam que tinha sangue real, era muito educada e gostava de promover encontros literários com declamações de poemas em francês e inglês. Em um desses encontros, fui selecionada para ler um poema em francês que trazia o título: “La Campanule”, um poeminha curto, quase um epigrama. Na véspera da apresentação, por inibição, desisti de recitar o poema, arranjaram uma substituta de última hora, a colega Ester.

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Fonte: CicDamas
Do período de colégio fiz boas amizades: Benita Silveira Fiqueiredo, Marisa Ernesto Leal de Melo, Tânia Pimentel Santos, Molina Moura Ribeiro, as irmãs Socorro e Madalena Crispim, Tânia Hamad, Terezinha Vilar, Noalda Soares, esta última era minha companheira de caminhada nas idas e vindas para o Colégio das Damas, morávamos na mesma rua, Siqueira Campos. Tânia Hamad me ensinou a escrever seu nome em árabe que ainda hoje sou capaz de repetir.

Os anos se passaram, o Colégio das Damas continua funcionando no mesmo local – Praça da Bandeira, internamente mudou muito, a fachada sofreu modificações também, mas se “de tudo fica um pouco”, como diz o poeta Drummond, desse tempo ficou o devaneio diante dos quadros da Editora Melhoramentos, a conquista do 1º. lugar no exame de admissão, o boletim amarelo e uma saudade infinda de um tempo que se foi.

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