Ouvi a frase que intitula este artigo de um homem simples, sem escolarização formal, mas com a consciência bem azeitada sobre a triste ...

Daqui pra frente, só tem pra trás...

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Ouvi a frase que intitula este artigo de um homem simples, sem escolarização formal, mas com a consciência bem azeitada sobre a triste condição do Brasil. Como sempre digo, o fato de ser analfabeto ou de não ter uma escolaridade formal e completa, em que se inclui o curso superior, não descredencia a inteligência de ninguém. Muitas vezes, pessoas assim são mais inteligentes e perspicazes do que muito doutor de anel no dedo e de título acadêmico.

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A frase serviu-me de deixa para trazer à tona a maneira como a tão decantada escolaridade caiu. Na realidade, despencou, vertiginosamente. Para usar um termo caro a Euclides da Cunha, derruiu. Como passei os últimos 45 anos ministrando aulas, incluindo, pelo menos por 8 anos, aulas no primeiro e no segundo grau, da 5ª série ao 3º ano, pude observar essa decadência na educação, que, simplesmente, não incomoda os desgovernos sucessivos do Brasil. Contrariamente, a deseducação os beneficia muito, por tornar a população serva de um sistema que a aprisiona na ignorância e na miséria.

Não quero nem falar nos que estão ingressando na universidade. Uma lástima, principalmente nos cursos de Humanas. Digo isto por ter passado 38 anos como professor de Línguas e de Literaturas. Quem quiser me contrapor, fique à vontade, mas tem que mostrar, junto com a contraposição, a sua experiência como professor. Na teoria e na propaganda – nome aqui mais adequado do que publicidade – está tudo uma maravilha. A cada mudança no sistema de ensino, pois cada um que entra dá a sua contribuição para a manutenção da ineficácia, a promessa é de virarmos uma Suíça.

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Façamos uma comparação com um Brasil que não está tão longe assim. O término do primeiro grau, o 5º ano primário, era mais conhecido como “admissão”, porque, para chegar à etapa seguinte, todos deveriam se submeter ao Exame de Admissão ao Ginásio. Submeti-me ao exame para a Escola Industrial Federal da Paraíba, em 1967, e fui aprovado. Era uma espécie de vestibular para jovens de 10-11 anos de idade, com dois dias de provas. Entrei na Escola em 1968, onde passei 8 anos, como se fosse a minha segunda casa. Ali entrei menino, dali saí um homem, com formação para a vida. Aliás, não conheço ninguém que tenha passado pela Escola e que a tenha levado a sério, que não tenha encontrado um caminho firme na vida. Tomo sempre de empréstimo a frase de D. Severina de Andrade, mãe do meu amigo José Fernandes de Andrade, por ele aposta no auditório do CEJUS, construindo com os seus proventos de Juiz Federal: “Quem estuda só anda pra frente”. Pois é, como o descaso com os estudos formais é grande, já não mais espantando ninguém a sua qualidade inferior, tal a banalidade com que se encara a educação, tem cabimento a frase que dá título ao artigo...

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@UBE/PB
Posso dizer, no entanto, que já houve muito mais rigor exigido pelo ensino formal do que aquele do meu tempo. Eu mesmo só entrei em contato com língua estrangeira – a língua francesa –, na Escola Industrial, o que foi determinante para a escolha da minha profissão. Numa aula, com a saudosa professora Alaíde Chianca, decidi, aos 11 anos, que queria ser professor de francês. Quis o destino que o meu primeiro contrato de trabalho formal fosse como professor da Aliança Francesa.

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Conforme podemos ver nas memórias de Ademar Vidal, com relação ao período em que foi aluno de Augusto dos Anjos, entre outubro de 1909 e setembro de 1910, com o privilégio de ter sido o único aluno, no horário da manhã, o quadro das disciplinas que o poeta ensinava a um menino de dez anos, em preparação para enfrentar os exames do Liceu Paraibano, é de espantar qualquer aluno do último ano do segundo grau de hoje (O outro eu de Augusto dos Anjos, Rio de Janeiro, José Olympio, 1967, p. 12):

“Seguiram-se semanas de frequência continuada. Dividiu-me as matérias nesta ordem: segunda-feira, Português; terça-feira, Geografia; quarta-feira, Francês; quinta-feira, Matemática, Geometria e Trigonometria, matéria de que nunca pude entender; sexta-feira, História Universal; e o sábado se destinava a uma recapitulação, de caráter pitoresco, porque envolvia tudo que lhe vinha à mente, no instante, inclusive assuntos sociais e domésticos, além de política local. Era divertido. Uma espécie de sabatina. Eu fazia força para que chegasse o derradeiro dia da semana, devido à falta de protocolo, saindo da rotina e, por outro lado, por invadir searas diversificadas, deste modo descansando daquele castigo de ficar sozinho, durante duas horas da mais excessiva timidez diante de meu mestre.”
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Edifício do antigo Convento Jesuíta, onde funcionava o Lyceu Paraibano, na praça Felizardo Toscano (atual praça João Pessoa), na cidade da Parahyba do Norte (atual João Pessoa
O relato não só me admira, com relação ao que uma criança de 10 anos estuda hoje, como ratifica a decadência do ensino e dos conteúdos escolares. Quando vejo o livro de História e de Geografia de meu neto de 11 anos, fazendo a 5ª série, sobe-me uma indignação por ver que a maioria do conteúdo abrange o que se chama hoje de “lacração”, com temas que fogem ao intuito da criação de uma base de informação e de conhecimentos, que vão nutrir a criança na formação do raciocínio. Querem dar saltos na formação, porque acreditam que a escola é para formar cidadãos... Como conceber que um ser humano consiga chegar à condição de cidadão, sem que tenha sólida base de conhecimentos que o faça lutar com consciência pelos seus direitos, refletindo e sabendo fazer as suas críticas ao poder constituído, qualquer que seja ele?
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Os mesmos que apregoam essa deformação das funções da escola são os que se deixam enredar pela política partidarista e passam a louvar governantes pelo que é a sua obrigação, do governante. Isto não é atitude de cidadão, senão de fantoche, vaquinha de presépio ou de papagaio a repetir o que não sabe o que diz. A minha sábia mãe, Dona Zezé, diria que “a mensagem não chegou à massa cinzenta”...

Antes de ser professor particular de Ademar Vidal, Augusto dos Anjos, de janeiro a junho de 1909, foi co-diretor do Instituto Maciel Pinheiro, situado à Rua Barão do Triunfo, número 65, cujo currículo era o seguinte, de acordo com Raimundo Magalhães Júnior (Poesia e vida de Augusto dos Anjos, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira/MEC, 1977, p. 199):

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“Na primeira parte da 2ª seção primária o Instituto Maciel Pinheiro ensinava ‘língua materna, geografia, história do Brasil, astronomia, contabilidade, geometria’ e aperfeiçoava ‘a leitura em exercícios sobre prosadores de estilo simples e puro’. Na segunda parte, o programa incluía ainda ‘as principais noções de música, desenho, ciências físicas e naturais, história da civilização e, em se tratando de meninas, trabalhos de agulha’. Tudo isso em dois anos. A 3ª seção, com outros dois anos, incluía ‘noções das línguas latina e francesa, noções de escrituração mercantil e de economia política, além de instrução cívica, com o conhecimento da Constituição Federal e da Constituição Estadual.’”

Sei que alguns irão concentrar a leitura e as críticas, fora do contexto da época, no trecho sobre as meninas e os “trabalhos de agulha”. Deveriam perceber que o conhecimento, ainda no primário, de geometria e de astronomia tornaria sem sentido a discussão sobre se a Terra é plana ou redonda, como se um corpo plano não pudesse ser redondo... Por outro lado, se no momento atual é difícil ensinar língua, qualquer língua, percebe-se que, nos idos de 1909, as crianças no primário, além da língua portuguesa eram postas em contato com o francês e o latim. A organização mental que uma língua, na condição de um sistema natural, traz para a mente de uma criança,
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evitaria os absurdos que querem impor aos usuários avessos a modismos e a frankensteins, que violentam o sistema, mas que passam como “evolução da língua”, noção danosa difundida e aceita por pessoas que não sabem o que dizem.

Há ainda outros ganhos, como o contanto com os escritores da língua, de início os “prosadores de estilo simples e puro”, eficaz método para estimular o hábito de leitura, ou “as noções de música”, que educaria o ouvido para evitar o que hoje se veicula como “música”. Não vou nem levar em conta as noções de ciências físicas e naturais, noções básicas, que são contrariadas, diariamente, por uma militância que só defende a ciência, quando ela lhe é conveniente.

Na realidade, os que quiserem ser críticos ao que foi aqui apresentado deveriam se fazer muitas perguntas, dentre elas, a mais crucial: Quando, em que ponto e por quê nos desgarramos?

Se ficarmos insistindo na exaltação de políticos; no vitimismo, que paralisa, e na lamentação inócua, a grande e brilhante reflexão de Dona Severina de Andrade, pela sua verdade simples e inequívoca, dará lugar e razão à ironia do cidadão do povo: “Daqui pra frente, só tem pra trás”.

E será, infelizmente, irreversível.

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  1. Ângela Bezerra de Castro26/8/23 20:49

    Mil, a decadência do ensino acompanha a decadência dos valores sociais. Numa sociedade em que fumar maconha e cometer o crime do aborto representam ser progressista, são práticas defendidas pelos líderes que dirigem o País, não se pode esperar a valorização do ensino. Ensino e aprendizagem exigem ética, organização, hierarquia , respeito, responsabilidade, competência e honestidade. Toda grande escola tem esses valores como alicerce. Nossa ETFPB era assim. Lá, seria impossível fazer a propaganda da maconha e do aborto. Quem ousaria??!!!

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  2. Obrigado, Ângela, pela leitura e pelo comentário.

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