Quando o sangue de Margarida Maria Alves embebeu as terras de Alagoa Grande, umedeceu todos os canaviais da Paraíba. Seu martírio transformou-se em um grito que, quatro décadas depois, continua ecoando pelos córregos e chãs cobertas de cana, fazendo brotar novas margaridas em cada pé de serra.
Recordo o dia em que a líder camponesa teve seu rosto estraçalhado pelo chumbo disparado por uma mão treinada. Era uma tarde do triste agosto de 1983. Acabava de chegar à redação de A União, como fazia diariamente, quando correu a notícia fatídica, que logo causou alvoroço e perplexidade.
Museu e Assentamento Margarida Alves (Paraíba) Contag/USP
O sangue dos inocentes é fermento que faz crescer a luta por justiça, no campo ou na cidade. Mesmo que essa justiça tarde a chegar, um dia acontece porque o sangue aspergido sobre a terra, por mais ignota que seja, faz brotar o cajado do ajustamento de contas.
A bala que tirou a vida do bispo Oscar Romero e de tantos outros religiosos revelados na luta silenciosa que a Palavra de Deus suscita, teve a mesma intenção quando estraçalhou o rosto da camponesa que gritava por um pedaço de chão onde pudesse plantar e colher.
Em alguns momentos, observei Dom Marcelo Carvalheira falar sobre o papel de Margarida Maria Alves na luta pela igualdade de direitos, sempre escutando dele palavras animadoras. Ele comentava que o sangue do inocente jamais será em vão, pois, como fala o Senhor, muitos dos que dão a vida pela causa dos pobres terão a recompensa.
Aproximei-me de Dom Marcelo com a intenção de registrar momentos de sua vida que resultasse em uma biografia, e assim procedi, o que me deu oportunidade de escrever cinco livros sobre este missionário que carregava o dom da ternura e da solidariedade. Em algumas ocasiões, ele contava que quando estiveram juntos, durante a tarde funesta, percebeu Margarida em estado de inquietação quanto aos desdobramentos da luta em favor dos camponeses, que estavam cada vez mais sendo espezinhados.
A luta desta líder sindical não foi esquecida. Passados 40 anos do assassinato, tarde, ela recebe as honras póstumas ao ser considerada heroína nacional.
Quantas Margaridas ainda haverão de perder a vida em favor das causas dos pobres que desejam um pedaço de terra, um punhado de grãos para colocar na terra?
A imagem desta líder camponesa, revelada no sangue que ensopou as melhores e mais férteis terras da Paraíba, onde estão as serras e os baixios do Brejo, habitará as mentes humanas dos camponeses e alimentará corações para nunca desistir da luta. Por mais estranha que seja a sina dessa gente, mesmo que interrompida por uma mão assassina, sempre haverá alguém para escutar a voz que impulsiona a nunca desistir dos sonhos.
Sempre haverá alguma pessoa cultivando novas Margaridas. Na noite escura, às vezes alguém acende uma lamparina e outros animam os corações desesperançados.
Mesmo que a direção da bala seja o coração ou o rosto, como aconteceu com Oscar Romero e Margarida Maria Alves, não conseguirá apagar a chama da luta, em suas renovadas esperanças, como ocorreu nos tempos do poderio romano. Sempre existirá um Spartacus e uma Varinia a conduzir sonhos e esperanças, acreditando que a noite carrega consigo um alvorecer.
Margarida Maria Alves nunca amiudou suas posições em favor da vida; sua presença entre os canaviais se traduzia como irreprimível luz, mesmo sufocada pela sucção dos estratos do poderio das usinas, acoplado ao regime econômico escravizador.
Dom Marcelo nos ensinou a acreditar nessa luz, embora pequena, que brilha quando tudo é escuridão. Como um homem esperançoso, ensinava a quem estava perto dele a nunca perder a esperança, a não se esquivar do chamado, mesmo diante de uma estrada pedregosa.
A mártir, Margarida, aprendeu com o religioso essa lição e por isso se tornou uma dessas luzes que piscam no horizonte distante, sempre a iluminar a travessia da resistência. Eliminaram a margarida do Brejo, mas a semente da sua luta continuou, alimentada no silêncio por uma força estranha, para germinar flores em outros lugares.