Naquele começo de tarde de 1995 – ou 6, consigo ainda, em dado momento, rever-me em minha atividade diária da pintura: aos poucos, muito lentamente vou delineando uma figura masculina como elemento central do quadro. O primeiro plano é ocupado por este elemento humano, sentado em um banco de pintor. Ele tem o torso nu, descamisado. Ao lado dele há um garoto. O desenho havia se modelado pela memória de meu filho que já não vivia comigo. Passados 28 anos, consigo ainda lembrar alguns detalhes daquele momento.
Por meio de pincéis finos, hábito já arraigado, tentava eu fazer o ressalto dos volumes e baixas da região superior do tronco, mais especificamente da clavícula, trabalhinho que não deixava de ser um tanto enjoativo pela dosagem exigida de concentração, aliás obrigatória, para todos que pretendam atingir alguma paridade entre pintura figurativa e o chamado estilo realista –, e já me encontrava um tanto enfarado, acho até que exausto, quando, de repente, cedendo a uma pulsão absolutamente inesperada, peguei um pincel largo e chato e, de forma indistinta, mas bem decidida, apliquei sobre a área o que os manuais técnicos de pintura costumam chamar de Veladura Sêca.
A direção daquela pincelada larga, no entanto, deu-se transversa e aparentemente desconstrutiva; entre perpendicular ou oblíqua à todos os movimentos de pincel até então usados com objetivo de ressaltar o referido detalhe anatômico. Nasceu de compulsão incontrolável; tratou-se de um impulso brotado de pura explosão intuitiva, e se não inconsciente, totalmente inexplicável para mim. Fui obrigado, porém, a constatar em seguida que aquele gesto impulsivo redundara em algo imprevisto e ultra benéfico: pude verificar maravilhado que o efeito resultante me poupava de perder mais tempo elaborando concavidades ou ressaltando volumes, marcando e retocando desníveis com a preocupação de fugir a primitivismos técnicos e conseguir assim expressar a leveza com a qual as boas obras de Arte costumam premiar nossos olhos. O gesto meio que tresloucado tinha resultado em uma rápida e eficiente harmonização dos desníveis anatômicos da figura.
Minhas primeiras pinturas de telas tinham se dado há mais de 20 anos, e numa tentativa de explicar o ocorrido naquele começo de tarde, não achei melhor saída que atribuir aquele gesto o que se reconhece por “bambo”, ou por acaso, por sorte, “acidente”, coincidência, etc., e deixei aquilo pra lá, certo de que numa atividade constante como essa minha de pintar, contando já naquele tempo com um histórico de mais de 20 anos, qualquer coisa podia acontecer para enriquecer o acervo de ações casualmente inexplicáveis e possibilidades inusitadas.
Quatro anos depois, há muito esquecido do incidente pictórico, e habitando outro atelier bem distante dali, eis-me novamente pintando uma figura na qual me esforçava mais uma vez para atingir certo estado de naturalidade física quando, um impulso semelhante veio à tona e, sem perda de tempo, apliquei outra larga pincelada transversal às pinceladas iniciais. O resultado revelou-se idêntico ao anterior. Recordei-me imediatamente da primeira ocorrência e naquele momento uma certeza me tomou conta do espírito: aquele primeiro gesto não fora fruto do acaso, e muito menos este segundo. Eles eram o resultado de um progresso técnico nascido exclusivamente da prática, da pura intuição operativa, e eu não tinha por que ficar esperando por uma nova ocorrência casual daquilo que, agora, ficara evidente tratar-se de um recurso técnico desenvolvido na prática. E de um recurso técnico rico e desconhecido, do qual não fizera antes a menor ideia.
Resolvi então que eu devia refazer o gesto naquele momento sem esperar por motivações secretas, e não deu outra. O recurso funcionou, e sem maiores dificuldades. Eu havia deixado o canhestro enfadonho da pincelada unidirecional, e fazia agora o que nunca vira ninguém fazer antes, talvez pela falta de escolas de Arte na Pb, cujos artistas não seguiam os ditames de técnicas mantidos a séculos por escolas de raiz europeia, e costumavam formular seus próprios métodos, uns mais eficazes, outros, menos.