Venho falar-vos de Beethoven , Luiz de Beethoven. Não apenas o Beethoven das partituras, das notas musicais, mas o Beethoven, homem...

A outra face de Beethoven

beethoven historia musica classica erudita

Venho falar-vos de Beethoven, Luiz de Beethoven. Não apenas o Beethoven das partituras, das notas musicais, mas o Beethoven, homem de ideias, Beethoven filósofo. Como se sabe, ele não foi um temperamento essencialmente musical. Teve outras preocupações que não só artísticas. “Aos vinte e oito anos eu já era filósofo” — exclamava ele no seu Testamento de Heiligenstadt.

É, pois, essa outra face de Beethoven, esse outro aspecto de sua dramática personalidade que aqui pretendemos focalizar ligeiramente.

beethoven historia musica classica erudita
N. Aronson
Escreveu um moderno pensador italiano:

“A dor é a estrada mestra de toda ascensão espiritual, que não pode ser conquistada sem fadiga. A dor prepara o caminho às profundas introspecções; revela o que se encontra além da superfície; desperta o espírito que poderá, fatalmente, adormecer no bem estar; submete-o a contínua ginástica que lhe desenvolve as melhores qualidades”.

Parece até que foi Beethoven quem andou inspirando estas palavras! Com efeito, nenhum gênio sofreu mais, nenhum gênio foi mais perseguido pelo Destino do que o criador da Nova Sinfonia, que logo cedo se tornou um introspectivo, um solitário, um filósofo.

Ele mesmo, certa vez, conforme citação de Vincent D'Indy, gritou exasperado: “Pobre Beethoven, este mundo não te proporciona felicidade e somente nas regiões do ideal podes encontrar a paz”.

beethoven historia musica classica erudita
J.H. Fekkes, S.XIX
A propósito da formação intelectual do gênio de Bonn, informa o Dicionário Enciclopédico Hispano Americano:

“Nutriu-se também sua inteligência com leitura dos clássicos: de Homero, Platão, Virgílio, Tácito e Plutarco, entre os antigos, e de Shakespeare, entre os modernos. A filosofia e a história lhe eram familiares, e os sombrios problemas sociais, por cuja solução a humanidade luta, também o comoviam”.

Fernando Luzzi, da Universidade de Roma, salientou que “em Beethoven, o poder de abstração, a universalidade de ideias, a preferência da arte, salvo raríssimos casos, de conteúdo e sentido prático, a aspiração pelo “conhecimento” estético, o ânimo heroico e severo, e ao mesmo tempo cheio de bondade e de amor, colocara-o no cimo da corrente que nos legou, com Kant, Goethe, Schiller, o melhor que produziu o romantismo nos séculos XVIII e XIX”.

Como é sabido, Beethoven, ao contrário de Mozart, não revelou nenhuma precocidade musical. Estudou música à força, por imposição do pai, que era músico.
beethoven historia musica classica erudita
German Sch., S.XIX
É bem possível que alguém, compadecido do esforço do menino, de sua cara zangada diante da partitura, tenha dito precipitadamente:

Ele não tem vocação para a música. Deixe-o em paz.

Mas acontece que Beethoven – como observou com muito acerto Mário de Andrade- foi um gênio ao acaso da arte que lhe coube. E adiante explica o notável musicólogo brasileiro: “Não estou convencido que a música fosse de preferência dele, não. Foi a arte que lhe deram em menino, os pais e as circunstâncias da vida. E talvez mesmo o acaso não tenha sido feliz na escolha da arte que deu ao grandiosíssimo gênio. Seja porque fatos forem, Beethoven chegou quase a odiar a música em rapazola, e sabemos que compunha às mais das vezes com dificuldade extrema. E esta dificuldade não provinha da ânsia de perfeição musical, porém de preocupações intelectuais, de ordem literária, de ordem especialmente filosófica, que nada têm a ver com música. Foi músico e deixou obras primas sublimes em música não tem dúvida, mas deixou páginas literárias geniais pela grandeza e elevação de ideias, força, profundeza de expressão. Entre estas o Testamento de Heiligenstadt que é monumento imortal”.

Não resta dúvida que para melhor compreendermos a obra de Beethoven, captarmos a sua mensagem artística, aconselhável se torna a leitura de suas cartas íntimas, e, sobretudo o trágico e sublime testamento o que ele redigiu, em Heiligenstadt,
beethoven historia musica classica erudita
@beethoven
perto de Viena, e quando já não alimentava mais nenhuma ilusão da vida e dos homens.

A verdadeira alma de Beethoven, pois, não está somente em sua música, mas também em sua produção literária.

Essa universalidade de ideias, essa preocupação intelectual, essa sede de conhecimentos, essas reflexões sobre a vida e sobre os homens, concorreram ainda mais para torturar o gênio de Bonn. Nele não encontramos aquela clareza mozarteana, aquela tranquila religiosidade de um Bach. Este, por exemplo, levou uma vida sossegada, na paz quieta de um lar, rodeado de uma infinidade de filhos. Ao sair de casa entrava na Igreja, e aí se entregava de corpo e alma ao órgão. Punha-se, então, a conversar com Deus.

Mas em Beethoven tudo foi dramaticidade. A dor o perseguiu até o fim. Sua mãe, ao que se informa, era uma mulher taciturna, ao ponto de dizer uma de suas amigas nunca a ter visto rir.

Natural, portanto, que Beethoven, entre uma mãe macambúzia, sem carinho, e um pai bêbado, um pobre homem que muitas vezes era encontrado estendido pelas calçadas, começasse desde cedo a compreender que o mundo não é nenhum mar de rosas e que a vida deve ser encarada com seriedade.

beethoven historia musica classica erudita
German Sch., S.XX
Afora esses fatores de ordem moral e psicológica, que tanto influíram na formação da personalidade de Beethoven, há a registrar aqui a sua fealdade física. “Era feio, picado de bexigas e os seus modos nunca perderam a rudeza da sua educação primitiva” – escreveu o biógrafo Ernest Newman. E concluiu:

“Feio como era, teve, entretanto, por algum tempo, veleidades de conquistador. Mal se tinha instalado em Viena, começou logo a trajar com requinte e a tomar lições de dança, embora, logo depois, renunciasse de ser dançarino”.

Está visto que Beethoven não tinha jeito para o mundanismo, para a vida social, onde se moviam vaporosas e perfumadas vienenses. O grande compositor compreendeu logo que aquele mundo não era o seu mundo. Um Goethe talvez se desse bem nos salões aristocráticos, cheios de etiquetas e curvaturas, mas ele, Beethoven, de procedência humilde, democrata por índole, homem do povo, não fora nascido para tais ambientes.

Ao tempo em que lecionava em Bonn, apaixonou-se por algumas de suas encantadoras alunas, cuja posição social distava muito da sua. No entanto, o Mestre, consciente de sua genialidade, de sua força criadora, não dava o braço a torcer.
beethoven historia musica classica erudita
W. Mahler, 1804
Sabia que todos os dias nasciam príncipes, mas que um Beethoven era coisa rara. As graciosas alunas, porém, não compreendiam esse orgulho do professor. Jamais o desejariam para esposo. E assim é que uma delas, Magdalena Willimann, que se tinha notabilizado como cantora, perguntada por que razão sua tia tinha recusado o compositor, desatou a rir e respondeu: — “Porque era muito feio e meio maluco”.

A condessa de Gallenberg, uma de suas paixões, disse, um dia, já na velhice, ao ouvir falar do autor de Egmont: “Foi um professor de música. Era um homem de sentimentos elevados, mas como se vestia mal...”

Esse o mundo que não compreendeu Beethoven. E daí o acharem esquisito, rude, grosseiro. Gênio, caráter, bondade, nada disso estava interessando à sociedade, que media as criaturas pela indumentária, pelo verniz, pelas aparências.

Apesar da retidão de seu espírito, da bondade de seu coração, do alto padrão de moralidade que norteava a sua conduta na vida, Beethoven não conseguiu realizar aquilo que o mais medíocre e anônimo dos homens consegue: construir um lar, um refúgio para a sua alma torturada,
beethoven historia musica classica erudita
English Sch., S.XIX
junto a uma esposa amiga e compreensiva. Não provou a alegria simples como a de acariciar a cabeça de um filho.

Todas as suas tentativas para o matrimônio foram frustradas. O seu drama haveria de ser o da solidão. Assim queria o destino. Até que, para complemento de sua desgraça, surgiu a maldita surdez. Aí ele brada indignado; revela o seu grande amor pelos homens.

É comovente a confissão que faz o seu amigo Wegeler: “Tudo quanto sei dizer é que levo uma vida infeliz; há dois anos que evito todas as reuniões da sociedade, porque me é impossível participar: estou surdo. Se pertencesse a qualquer outra profissão, seria fácil, mas na minha, é uma cousa terrível, pois os meus inimigos, e não são poucos, que diriam?” Mais adiante, exclama: “Muitas vezes amaldiçoei a minha existência. Plutarco ensinou-me a resignação. Quando posso, desafio a minha sorte, mas há momentos na vida em que sou a mais desgraçada das criaturas de Deus”.

Essas confidências feitas a Wegeler revelam o seu estoicismo diante da dor, a luta titânica que moveu contra a adversidade. Procurava, então, nas leituras o lenitivo, a consolação.

beethoven historia musica classica erudita
S. Hampel, S.XIX
Mário de Andrade tem razão quando chamou o Testamento de Heiligenstadt um monumento imortal. Ali vamos encontrar o verdadeiro Beethoven, o Beethoven que se ocultava por trás da carranca, das atitudes bruscas, dos gestos violentos. Não é na sua música, mas nas páginas do velho Testamento que melhor penetra mas na intimidade beethoveniana. Então, vemos quanto era bom, humano, fraternal aquele homem arisco!... Só depois da leitura desse Testamento é que estamos suficientemente preparados para receber a sua mensagem musical. É o literato, o pensador, explicando o musicista, o compositor.

Vale a pena transcrever aqui trechos do importante documento, dessa admirável peça literária, que começa num tom dramático para não dizermos trágico, num estilo incisivo, bíblico, à altura de um Beethoven:

beethoven historia musica classica erudita
“Vós homens que pensais ou dizeis que sou mau, obstinado ou misantropo, quanto sois injustos para comigo, não sabeis as causas secretas das minhas atitudes, desde a infância o meu coração e o meu espírito inclinaram-se para os termos sentimentos do bem querer, sempre ansiei por cometer grandes feitos, pensai, porém, como durante seis anos tenho sofrido um mal irremediável, agravado por médicos destituídos de senso, ludibriado, todos os anos, com a esperança de melhoria, finalmente compelido a encarar a perspectiva de uma doença duradoura, nascido com um temperamento ardente e vivaz, até mesmo propenso às distrações sociais, fui cedo forçado a isolar-me, a viver na solidão”.

Mas a Arte muitas vezes o salvou em meio a essas crises interiores. É ele quem confessa:

“Somente a arte me detinha, parecia-me impossível deixar o mundo sem ter produzido tudo quanto eu sentia que tinha sido chamado a produzir, e assim suportei esta existência desgraçada – verdadeiramente desgraçada”.
beethoven historia musica classica erudita
R. Eichstaedt
Então dirige-se a Deus, a sua grande esperança. Confessa que é bom, que ama a humanidade. É uma oração fervorosa, própria de um espiritualista: “Ser divino, tu penetras no mais íntimo da minha alma, tu a conheces, tu sabes que dentro dela existe o amor à humanidade e o desejo de fazer o bem”.

E vem, em seguida, a grande e dramática lamentação, a queixa impressionante:

“Ó homens, quando algum dia lerdes estas palavras, refleti que fostes injustos para comigo e oxalá que os infelizes se resignem ao saberem que houve um desgraçado como eles, que a despeito de todos os obstáculos da natureza fez tudo quanto estava em seu poder para ser aceito entre os artistas e homens dignos”.
beethoven historia musica classica erudita
German Sch., S.XIX
Temos nesse Testamento, como se vê, o legítimo retrato de Beethoven, a sua natureza íntima. O seu Testamento é o doloroso desabafo de uma genialidade infeliz, dramaticamente infeliz.

Estava sempre pronto a arrepender-se, a reconhecer os seus defeitos, as suas irreflexões, os seus arrebatamentos temperamentais.

Numa carta que enviou a Wegeler, em que procura se reconciliar com o amigo, já não vemos aquele Beethoven voluntarioso, impulsivo, estabanado, carrancudo, que não se descobria à passagem da Corte Imperial. Vamos encontrar um Beethoven que se desculpa, que se humilha, que pede perdão, a alma de joelhos, os olhos molhados:

“Meu caro e melhor amigo! Em que luz odiosa me exibiste a mim próprio! Confesso-o, não mereço a tua amizade. És nobre, tão ponderado, que a primeira vez que fiquei ao teu lado, senti-me inferior a ti! ... Tu pensas que perdi parte da minha bondade de coração; mas graças a Deus não foi maldade instintiva nem sequer
premeditada que me induziu a proceder para contigo como procedi, foi a minha indesculpável irreflexão, que me impediu de ver o caso à luz verdadeira. Como estou envergonhado, não por tua causa, como também por mim... Deixa que eu diga em meu favor que sempre fui bom, e sempre me esforcei por ser digno e sincero nas minhas ações – de outro modo, como terias sido meu amigo? Podia eu ter mudado tanto para pior, em tão pouco tempo? Impossível; esses sentimentos de bondade e amor da justiça não podiam ter morrido em mim, num momento. Não, Wegeler, querido e bom amigo não te recuses a lançar-te outra vez nos braços do teu Beethoven. Confia nas boas qualidades que encontravas nele; garanto-te que o templo puro da sagrada amizade, que tu erigiste, conservar-se-á firme para sempre; nenhum acidente, nenhuma tempestade abalará os seus alicerces – firmes- para sempre – a nossa amizade – perdão – oh! Wegeler, não repilas esta mão que pede a paz. Põe-te no meu lugar – Meu Deus! Mas basta. Venho lançar-me nos teus braços, suplicar-te que me restituas o amigo perdido. E tu te darás a mim, teu Beethoven, outra vez arrependido, penitente, dedicado e, que nunca te esquece”.

Eis a verdadeira face de Beethoven, a que ele escondia aos homens, mas revelava aos íntimos, através da correspondência, no silêncio de um quarto. A mão que se ergueu raivosa contra um trovão, era a mesma que pedia paz, que se estendia humilde, rogando misericórdia.

A luta interior, a luta dos sentimentos foi enorme.

beethoven historia musica classica erudita
German Sch., S.XIX
Sua vida foi um constante combate. Uma guerra sem quartel. O Destino, o seu maior inimigo, não conseguiu abater-lhe o ânimo, apesar de todas as ciladas, de todos os golpes, de todas as investidas traiçoeiras. É que Beethoven foi antes de tudo um homem de fé. Soube carregar a sua cruz de cabeça erguida, como um verdadeiro crente, o olhar sereno e confiante na Divindade.

Eis como foi o nosso músico-filósofo, tão dramático com um Nietzsche, mas nunca pessimista como um Schopenhauer. Outro, em suas condições, talvez tivesse sucumbido, debandado, desaparecido pela porta larga e covarde do suicídio. Mas Beethoven jamais capitularia. Foi tão combativo, tão heroico como um Napoleão, a quem tanto admirou. E quando sentia fugir-lhe as forças, abria o seu Plutarco e com ele aprendia a ser resignado. Depois tinha a Arte, a Música, e a consciência de uma missão a cumprir, a certeza de uma predestinação. É bom que repitamos aqui as suas palavras:

“Somente a Arte me detinha, parecia-me impossível deixar o mundo sem ter produzido tudo quanto eu sentia que tinha sido chamado a produzir”.

Sim, Deus o havia convocado, e ele não poderia fugir à dolorosa missão, a missão de tornar os homens melhores e menos infelizes. Obra como a Nona Sinfonia é um caminho para a espiritualidade, uma janela escancarada para o Infinito. O seu adágio é uma prece, um sermão sem palavras, um poema de fé e religiosidade.


E saber que esse Gênio viveu num século de desespero, de frio materialismo e lamentável descrença, uma época de crise e transição. Sobre esse revolucionário período histórico, escreveu Will Durant:

“Que dinastia de sofredores – do moribundo Beethoven, sacudindo os punhos contra o fado, de Schubert bêbedo, de Schumann louco e de Chopin roído pela tuberculose e abandonado por George Sand ... E prossegue: “Os filósofos do século anterior ao nosso eram quase tão infelizes como os compositores; começam com Schopenhauer, o autor da enciclopédia da miséria humana, e termina com Nietzsche, que amou a vida pelo que nela havia de trágico, mas enlouqueceu à ideia de viver novamente”.

Numa época de tanta inquietação espiritual, de tanta ausência de Deus, de tanta angústia, Beethoven entoou um Hino à Alegria, inspirado em uns versos de Schiller, como coroamento de sua obra musical.


Deixou-nos este grande e expressivo exemplo de resignação, de dignidade e heroísmo no sofrimento. Diante de sua vida, de sua luta, de sua obra, de seu exemplo, como se tornam ridículas as nossas mágoas, nossas dores, nossas medíocres lamentações!...

Lembremo-nos das palavras de Romain Rolland, o seu maior biógrafo:

“Querido Beethoven! Muitos outros encomiaram a sua grandeza artística. Porém, ele é algo mais que o primeiro dos músicos. É a força mais heroica da arte moderna. É o maior e o melhor amigo dos que sofrem e lutam. Quando nos achamos entristecidos pelas misérias do mundo, ele é quem vem a nosso lado, como ia sentar-se ao piano de uma mãe enlutada, e sem dizer palavra, consolava a que estava chorando com o canto da sua queixa resignada. E quando nos cansamos do eterno combate inutilmente travado contra a mediocridade dos vícios e das virtudes, é um bem indizível submergir-se nesse oceano de vontade e de fé”.

E nada como as palavras de Vincent D'Indy para encerrarmos: “Possa seu exemplo ser-nos proveitoso e o culto de sua Arte fazer reinar entre nós a doce Paz e a fecunda Caridade”.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também