Faça uma lista de grandes amigos
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Oswaldo Montenegro
Oswaldo Montenegro
Eneas era professor de inglês na capital paulista. Professor de cursinho pré-vestibular dessa disciplina ou era muito bom de tablado ou os alunos debandavam quando era aula dessa matéria. Ninguém era obrigado assistir aula alguma. E de inglês, então? Alguns alunos já tinham feito intercâmbio, outros frequentavam cursos particulares. O fato era que em uma sala de cursinho, uns dois terços eram praticamente fluentes na língua. Por que assistir às essas aulas?
Mas Eneas conseguia quebrar esse paradigma. Ninguém ficava de fora e não perdiam suas performances. Tinha a bossa de ensinar, de ser convincente e cativante. Frequência total quando esse meu amigo se posicionava no tablado com seu talhe e estatura de gente bem nascida. Fumos de nobreza com ares meio de hippie, mas barba devidamente aparada, jeito meio de intelectual, essa criatura, como dizem, ia vendendo seu peixe... E como vendia bem.
Um dia resolveu mudar de ares e de vida. Mulher, mais dois bacurizinhos, decidiram deixar o Planalto de Piratininga e buscar refresco para os pulmões longe daquela pauliceia desvairada. Mas, onde? Vou contar.
Entre Caraguatatuba e Ubatuba, a rodovia Rio-Santos em determinado trecho, afasta-se da praia adentra-se alguns poucos quilômetros ao continente contornando algumas elevações montanhosas. No sopé dessas montanhas fica a praia de Fortaleza. À época uma brenha onde nem energia elétrica chegava. Pois ali, Eneas comprou terreno (põe terreno nisso!) e edificou sua morada. Simples como as dos caiçaras locais. Trocou as aulas pela corretagem de terrenos, a mulher se envolveu com artesanato e com alguma economia acumulada iam tocando a vida num abraço generoso à natureza. Estava na vida que havia pedido a Deus. Mas, já dizem, que não há mal que sempre dure e nem bem que nunca se acabe, certo dia, num Sol de janeiro, alguém aparece por ali perguntando onde morava um tal de Eneas. É aquele ali ajudando puxar a rede, disseram. E lá estava nosso dândi em trajes precários fazendo-se de pescador. Uma bermuda e só!
Feitas as apresentações, veio o convite: Um dia completo de aulas em São José (seis pela manhã, duas à tarte e quatro à noite), deslocamento pago, hospedagem e alimentação. Foi dito o valor da hora/aula, carteira assinada etc, etc...
Esses valores pagos por uma aula de curso pré-vestibular quarenta anos atrás, eram o que um médico recebia por uma consulta, impensáveis hoje. As aulas seriam às quartas-feiras. Eneas, pensou, pensou e conjecturou que aquilo ia ser um bom acréscimo ao seu orçamento (me confessaria isso anos mais tarde), não iria contra seus propósitos de se livrar de uma vida engessada por horários e compromissos. Afinal, seria apenas um dia e no meio da semana. Topou!
A criatura que apareceu com essa proposta inesperada foi esse escrevinhador aqui, nesses anos, estabelecido em São José dos Campos e dirigindo escola de uma rede de ensino.
Fui durante uns cinco anos de convivência bem próxima descobrindo a outra face de Enéas, culto, possuidor daquela ironia fina e sutil, generoso e muitas vezes senti aquela inveja despretensiosa do modo de vida que esse meu amigo adotara.
Com mulher e duas cabritinhas que eu tinha àqueles tempos, fui algumas vezes, passar uns dias lá na praia de Fortaleza acolhido com muito carinho naquele canto escondido do mundo.
De uma feita levei uma muda de jabuticabeira que brotara no meu quintal. Plantei no terreno de Eneas, a alguns metros da porta da cozinha. Sopé de montanha, luz direta a maior parte do dia e umidade no solo, só poderia vicejar como o fez.
A vida, sabem como é, vai afastando os amigos. Assim foi com esse meu parceiro. Cada um tomando rumos diferentes e passamos a nos ver esporadicamente até perdermos o contato. Eu já vivendo em João Pessoa anos depois, Eneas me localizou e deixou o recado: A jabuticabeira está carregada que é uma boniteza de se ver!
Nunca mais soube desse meu amigo. Nem da jabuticabeira. Tanto Eneas como o pé de fruta que lá plantei são imagens emblemáticas dos castigos que levamos da vida. De quantos amigos fui me afastando sem que me desse conta.
Ah, meus leitores, minhas leitoras, Hoje me resta ao menos saber que minha saudade, no que diz respeito aos amigos, está como a jabuticabeira que plantei na casa de Eneas: carregada que é uma boniteza de se ver.