Não havia pranto em volta da nossa amiga, à exceção dos olhos da filha que se marejaram quando da nossa chegada ao velório, apenas nest...

Um puxa o outro

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Não havia pranto em volta da nossa amiga, à exceção dos olhos da filha que se marejaram quando da nossa chegada ao velório, apenas neste momento. É como se aquela mãe houvesse passado a ordem aos três rebentos, uma moça e dois rapazes: “Sem choro”. Não o fizesse para poupá-los do desespero, assim o faria a fim de não comprometer o bom humor com que sempre se postou na vida. Em seus bons momentos, ninguém ficava sem rir ao seu lado.

Além do mais, sua morte encurtava as dores e a agonia decorrentes de um câncer em estágio agudíssimo, terminal. Punha fim ao padecimento que já se fizera de toda a família. Devotos da fé católica quase com o
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G. Marino
fervor daquela de cujo ventre saíram, os três irmãos pareciam contemplar o ataúde e sua ocupante com a emoção de quem observa uma fotografia. Nem mais nem menos.

Não duvido de que não mais viam ali a mãe querida. Esta, certamente, já estaria ao lado de Deus e parentes também já idos, todos felizes e saudáveis. Aos de muita fé convém e sempre convirá pensar assim.

Minha mulher, a quem pedi para conter as lágrimas, continuava a olhar para a moça de cuja amizade privamos desde os tempos da adolescência. Recostou-se a mim e cochichou ao meu ouvido: “Lembra de que ela atiçou nosso namoro?”. Deus abençoe as mulheres. Naquele exato momento, eu não lembrei disso. Engoli o bolo que me veio à garganta, pus freio na emoção e mantive a pose.

Um comentário feito a esmo, não sei por quem, trouxe-me à memória a sentença da Tia Carminha, irmã do meu pai, por ocasião da morte do meu avô Frutuoso, de quem herdei o nome: “Quando os dois se gostam muito, um puxa o outro”.

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DDP
Nossa amiga havia perdido o marido nove meses antes de ser colhida, ela também, pela morte. Há nove meses, sequer sabia da existência do câncer que tão perversamente a subtrairia do nosso convívio. “Um puxou o outro”, no dizer, agora, daquele observador. Foi quando atentamos, eu e minha mulher, para a desventura daqueles três filhos, um já casado e outros dois mal saídos da universidade.

Com o velho Frutuoso deu-se do mesmo modo. “Mamãe veio buscar Papai”, comentava, à altura dos meus doze anos de idade, a tia querida para, de pronto, tomar carão dos irmãos mais velhos. “Deixa de bobagem, Carminha”, ralhou Seu Juca, de cujos cachos eu vim ao mundo. E assim o fez, em voz alta, para os ouvidos
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R. Burley
dos que se espremiam na sala de visitas da casa paterna em torno do caixão envernizado.

Ela presenciara a arenga entre o pai e a mãe em razão do descuido desta última com a própria saúde. “Não morra não, que eu me caso com outra”. Minha avó Soledade ouviu isso e não deixou por menos: “Pois, eu venho te buscar”.

Assim prometeu e assim o fez quatro anos depois do desentendimento com o marido, pelo menos, ao que criam as Tias Carminha e Terezinha, ambas contrárias aos novos laços matrimoniais do pai. Os quatro irmãos, não. Estes desejavam que ele, do alto dos seus 60 e poucos anos, retomasse a vida ao lado de outra companheira.

Descendo de uma família de comerciantes. Tanto meu avô quanto meu pai montaram padarias em cidades diferentes e distanciadas 12 quilômetros uma da outra. Meus tios estabeleceram-se como merceeiros. Pois bem, naquele fevereiro de 1958, domingo da Festa do Padroeiro de Juripiranga, a segunda noiva do meu avô esperou em vão no altar.

Ele não abriu os olhos nem pôs gravata e paletó para o casório quando um dos seus funcionários tentou acordá-lo por volta das 16 horas, conforme combinado. Um colapso cardíaco o matou na rede dependurada no pequeno
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G. Marino
apartamento edificado nos fundos da Padaria desde que se fora Vó Soledade.

Não lembro disso com tristeza. Fazê-lo significaria macular a imagem de um homem bem-humorado, piadista, presepeiro. Os assim tão alegres e engraçados sempre haverão de dispensar a dor e o choro. Afinal, vieram ao mundo para o envolvimento e o riso dos que tiveram a sorte de com eles conviver.

Mas, em fevereiro de 1958, aquele povo ficou sem sua festa. Como era de costume nas pequenas comunidades, a morte de alguém tão bem-conceituado e benquisto requeria o silêncio e o respeito. A banda apenas tocou na Procissão que percorreu as ruas com São Sebastião no andor. Não houve música nos parques de diversão nem no clube social que se fechou para o baile meses antes ali programado.

Uma moça chorosa, além disso, despiu e guardou para sempre (ao que eu soube) o seu vestido de noiva. Estou certo de que esta foi a última presepada do meu avô. Que Deus o tenha, como tenha, assim também, nossa boa amiga e tantos outros que nos deixam a lição do bem viver, do perfeito conviver.

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