Em 68 escrevi minha primeira peça teatral, “O Vermelho e o Branco”, a pedido do colega do BB, Ariosvaldo Coqueijo, espetáculo em que ...

Um grande momento de minha vida

piano musica freira
Em 68 escrevi minha primeira peça teatral, “O Vermelho e o Branco”, a pedido do colega do BB, Ariosvaldo Coqueijo, espetáculo em que acabei fazendo – com barba por causa disso – o papel de líder estudantil. Disso veio o pedido de que fizesse algo... menor, sobre Santa Catarina de Siena, com as estudantes do Colégio das Freiras. Um dia, ao chegar lá, uma das religiosas – de que me lembraria muito ao ver a presepeira ama de Julieta no filme de Zeffirelli – me encaminhou para um pequeno auditório com um velho piano... e o que aconteceu em seguida - eu, meio como Depardieu no filme "Greencard" - virou capítulo de meu primeiro romance, “Israel Rêmora”, publicado pela Record em 75:

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“Israel passou por um dos arcos, entrou no pequeno auditório, subiu para o minúsculo palco, aproximou-se do piano. Sem que pudesse distinguir qual delas, uma das irmãs surgiu do outro lado , envolta numa claridade difusa. Ele se perguntou, sentindo uma serenidade celestial: “Por que as freiras gostam tanto de mim? Serão assim com todo mundo?”

Suspirou. Sua mão direita correu pela casca seca do velho instrumento. Distraidamente, levantou-lhe a tampa, lembrando-se da primeira vez que chegara ali: barbudo. A Superiora viera atendê-lo sorrindo: “Ah, eu sabia que era o senhor! A irmã Lourdes me avisou que Jesus Cristo estava aqui”. E compreendeu: era parecido com “o Noivo”, daí a doçura com que o tratavam. Lembrou-se de seu avô tirando o cachimbo da boca e rindo. Ergueu a tampa do teclado amarelecido e cariado. Lembrou-se de Rocamadur no caixãozinho. Fez soar uma tecla. “Santo Deus, como eu gostaria de saber tocar! Talvez tudo isso que me atormenta saísse em forma de música. E esta impotência diante deste instrumento, agora mesmo está me sufocando, naquele apertamento da garganta na angústia. Mas eu tomei o calmante. Mas esta é outra limitação, opressiva demais. Como a que senti ante o corpinho de Roca, sem poder fazer nada para fazê-lo voltar. Oh, 'Levanta-te, Lázaro!' 'Tanto que meu velho queria me ensinar solfejos!...'”

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Começou, suavemente, a tocar nas teclas. E, aos poucos, sem se dar por isso, abstraiu-se completamente do que o rodeava, à exceção dos sons que surgiam e se juntavam. O piano, de fato, embora desafinado, começara a parecer querer dizer alguma coisa. Israel compreendeu isso e se esforçou para captar o que seria. “O pobre: há tanto tempo aqui, calado”. E prosseguiu tocando, mesmo quando o vulto alvo da irmã Lourdes parou junto dele. Apesar de todos os modos grotescos e da grande alegria com que ela sempre estava, ele apenas lhe sorriu, sem parar a música. A irmã abafou toda a sua vitalidade e lhe sussurrou séria, ouvinte atenta, fascinada:

- E o senhor... toca?!...

Ele negou com a cabeça. Olhando-a sem ver, disse-lhe que não. Alguma coisa ficou suspensa no ar, faltando. E ela, sem se controlar, recuou alguns passinhos graciosos, fazendo uma vênia ou fingindo colher uma flor e incorporou-se ao tema, começando a dançar um balé entre nostálgico e feliz e leve, dizendo-se a si mesma, com voz sumida:

- Oh... e eu... não danço...”

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