Narrar é sobreviver. É vencer o tempo e as armadilhas da vida. E enganar a morte. Foi assim com Sherazade e continua a ser com todos a...

Sísifos do sempre

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Narrar é sobreviver. É vencer o tempo e as armadilhas da vida. E enganar a morte.

Foi assim com Sherazade e continua a ser com todos aqueles que dão sequência ao texto ou ao "risco do bordado" que a humanidade vai desenhando e tecendo ao longo de sua história.

Na força da narrativa o real se transfigura, permanece e se eterniza, mesmo quando a referência temporal que lhe deu origem já se apagou na paisagem do mundo ou na memória dos homens.

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Gelza Rocha Aduf-PB
É esse poder de recriar o mundo, de restaurar o tempo, de reinventar a vida que atrai e consagra o narrador, e tem contrariado até hoje as vozes que se arriscaram a profetizar o fim do romance e da literatura.

Gelza Rocha iniciou-se no gênero narrativo com a publicação de Retratos, em 2003. Até então, sem participar dos círculos literários da cidade. Surpreendeu pela competente simplicidade como narrou a estória cujo motivo era a morte de um cachorro.

O cachorro de estimação do padre, perversamente morto e enterrado por um morador, a mandado do coronel da pequena cidade interiorana, ambiente do romance.

De forma leve, embora crítica, a escritora arma o conflito e desenvolve a trama para expor a estrutura de poder fundada na violência que faz proliferar a mediocridade onde se consomem os destinos.

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A personagem Lídice (ou Lili), do alto do seu observatório, uma frondosa mangueira no fundo do quintal, é um achado de mestra. Com ela fica bem provado que "matos têm olhos e paredes têm ouvidos". Lili se faz inesquecível pela inquieta inocência, que a coloca no centro do conflito, a partir de um ponto de vista privilegiado.

A escritora não se acomodou e reapareceu depois com uma narrativa ambientada na paisagem rural. O romance “Resistir... Reexistir” traz à cena o velho problema da grilagem de terras e se desenvolve pelo confronto entre o latifúndio de Dr. Ambrósio Salustino e o pequeno sítio Sabiá da família Teófilo. O latifúndio representando a monocultura da cana-de-açúcar e os interesses da Usina, enquanto o sítio representa a lavoura de subsistência.

Morto o dono do sítio Sabiá, o latifundiário, apostando na fragilidade da viúva, se aproveita para alegar velhas questões de limites entre as duas propriedades questões que envolveram, no passado, razões pessoais, paixão, violência e tragédia.

Até aí nenhuma novidade. O inusitado surge do comportamento da viúva e legítima herdeira do sítio.

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Rosa é o seu nome. Protagonista que encaminha as ações para a resistência em que ninguém acredita Os moradores acham que D. Rosa endoidou e o leitor será surpreendido com o desfecho dessa luta desproporcional.

Alheia aos problemas de administração da propriedade, Rosa fica completamente desorientada com a morte súbita do marido, sem a posse dos documentos do sítio, sem saber onde encontrá-los e até mesmo sem a certeza de que eles existem. Pois é em condições absolutamente adversas que a personagem cresce. E cresce sem rasgos heróicos, sem ostentação de bravura. Com o jeito simples de dona de casa, de pessoa comum, Rosa não se rende, vai lançando mão de todas as iniciativas ao seu alcance para defender o chão onde se sente plantada como uma velha árvore.

Decifra sonhos, interpreta sinais, articula significados em busca do único recurso que pode salvá-la da arbitrariedade do latifundiário. Até encontrar, enfim dentro do antigo livro de cantigas esquecido no fundo do baú, o papel amarelado que desmoraliza o falso registro comprado por Ambrósio Salustino, no Recife, forjado com a ajuda de um importante advogado.

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Rosa é uma heroína a quem não falta verossimiIhanca. Mesmo que o processo de narração elimine as fronteiras entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Os episódios de realismo mágico ou fantástico integram-se com perfeita naturalidade à experiência do mundo rural, onde o imaginário popular registra uma alma em cada quarto escuro e em todas as encruzilhadas e caminhos desertos.

Por isso tem um encanto especial a alma de Manuelzinho enchendo de cantigas e toques de violão a casa do sítio Sabiá. Não assombra ninguém. É encarada até com certa naturalidade pelos outros personagens, às vezes confundidos entre a realidade e os sonhos.

Fica muito claro que a simpatia consciente da autora vai para o personagem Antônio Preto, morador antigo que guarda como um oráculo as velhas histórias e os segredos da família Teófilo.

É para ele que está reservado o epílogo do romance, pleno de simbologia para exaltar as virtudes do velho morador, um herói entronizado. Mas, como sabemos, os personagens quando bem realizados, ganham vida própria e extrapolam a previsão do escritor.

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É o que acontece com Rosa. Nome de flor que não reitera a tradição de fragilidade mil vezes repetida na literatura. Enfrentando a luta incomum, Rosa Teófilo parece repetir os versos de Cecília Meireles: "aprendi com as primaveras/ a deixar-me cortar e a voltar sempre inteira"

Gelza cria, sem nenhuma dúvida, uma personagem inovadora. Uma mulher protagonista que assume a própria vida, defende o que é seu e vence. E o mais importante: sem apelar para a cultura masculina da violência. Rosa não veste gibão nem usa cartucheira. Também não se utiliza de expedientes escusos ou desonestos historicamente consagrados nas disputas de terra.

A sua luta, legítima e justa, recomeça a cada manhã, guiada pela intuição, pela perseverança e pela ética de fidelidade aos valores de preservação da terra-mãe e da própria identidade. Uma forma de enfrentamento aprendida no cotidiano desgastante das tarefas domésticas repetitivas e inglórias em que se consomem as donas de casa e mães de família, como Sísifos do sempre.

Rosa tem esse perfil. É o símbolo dessa resistência que ninguém nota e até subestima. Dessa resistência que, hoje, segundo as estatísticas, sustenta quase metade dos lares brasileiros

Resenha crítica sobre o romance Resistir... Reexistir, de Gelza Rocha Carvalho (Sal da Terrra)

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