Um dos princípios básicos do Sócrates, personagem de Platão, é o de dar o braço a torcer, ao reconhecer e se convencer de que o seu contendor está com a razão (Górgias, 506a). Sócrates, no diálogo citado, se esforça para que Calícles, cujo nome, ironicamente, significa “o da bela glória”, entenda este princípio simples e salutar, em qualquer debate. O diálogo existe para que se firme a verdade do assunto em discussão, através da argumentação, do silogismo bem construído, das relações dialéticas, que vêm à tona, durante a discussão de um determinado tema. Vence a verdade, não quem, utilizando-se da retórica, dirige-se a uma plateia para seduzi-la com o que ela gostaria de ouvir.
Em realidade, a boa argumentação deve seguir o real objetivo de dizer o que a plateia precisa ouvir, por mais duro e amargo que seja o que se ouve. A verdade não apenas não se refuta, como diz Platão, mas, principalmente, não dulcifica o amargor do remédio.
Assim também entendia o Padre Antônio Vieira, no famoso Sermão da Sexagésima, em que afirmava ser preferível sair de uma prédica sob o descontentamento da plateia, mas contente consigo próprio, a sair descontente consigo próprio, vendo o contentamento da plateia, eufórica, inebriada e alienada pelas palavras tão melífluas, quanto mentirosas. É o que vemos hoje em dia, quando pessoas sem argumentos, ao se verem refutadas, atribuem tudo a fake News, como se discordar fosse uma ofensa, e a mentira fosse criada apenas por um dos lados do Brasil polarizado.
A impressão que eu tenho é de que as pessoas não se escutam, quando falam, e quando escrevem não sentem o que estão escrevendo. Escrevem com o intuito de agradar alguém, de propagar alguma ideia equivocada que têm na mente, sem se dar conta de que estão escrevendo contra elas próprias, pois a maioria do que dizem, sem fundamentação alguma, só comprova o que elas veem como defeito nos outros.
Uma das ideias equivocadas diz respeito à expansão desmesurada da universidade, realidade que não se vê em países desenvolvidos. Outra é a de que a universidade tem como objetivo formar cidadãos ou, a que considero mais danosa, a de que o professor é um educador. Comecemos pela última.
Ainda se concebe que o professor seja educador quando ele é o profissional que cuida de crianças, que estão dando os primeiros passos na escolaridade, num período em que se pode observar uma certa transição entre a casa e a escola. É nesse momento que se faz necessária a intervenção do professor, ratificando os costumes da sociedade, cuja disseminação deve começar em casa. A casa, o lar, fiquemos ainda com Platão (República), é o primeiro momento da educação, da paideia (παιδεία), nome que, não esqueçamos, origina-se da palavra grega para criança, παῖς, παιδός.
No entendimento platônico, só se pode educar a criança; ao adulto, impõe-se a lei. É nesse momento também que, com toda a propriedade, a criança em processo de desenvolvimento, ampliando o seu espaço entre a casa e a escola, é chamada de aluno, cuja etimologia é proveniente do verbo latino ălo, alĕre, com o sentido de “aleitar”, “nutrir”. Ela é o alumnus, o que é nutrido; quem a nutre, seja a mãe, seja a ama, é chamada com o nome de alma, nutriz.
Quando a criança cresce e sai da adolescência, ganha o status de estudante, porque já entendendo o funcionamento das leis domésticas e sociais, e vendo-as ratificadas pela escola, o estudante não precisa ser aleitado por alguém, ele próprio pode ir atrás dos nutrientes que o farão desenvolver o seu intelecto, aprimorando-se na aquisição do conhecimento. Sendo estudante termo proveniente do verbo latino studĕo, studēre, com a significação de “dedicar-se”, fica claro que o conhecimento só se adquire com dedicação. É na universidade, se ele puder intelectualmente continuar os seus estudos, que essa dedicação deve se fazer maior, para que se alcance um novo patamar, o do pesquisador, que vai em busca não apenas da aquisição de conhecimento, mas, sobretudo, da produção do saber.
Ora, é necessário, pois, desmontar o equívoco de que a universidade é para formar cidadãos. Ela existe para que o cidadão possa, ali, no aprofundamento do saber, produzir mais conhecimento, mais ciência, cuja utilidade não será, necessariamente, de imediato assimilada pela sociedade, mas que poderá um dia ser descoberta e utilizada na prática. E o problema está em que o conhecimento nem sempre é utilizado para o bem da sociedade. Parafraseando Italo Calvino, diríamos que é melhor produzir conhecimento do que não produzir conhecimento. É melhor ter um conhecimento, sem uma utilidade prática imediata, do que não tê-lo, quando dele se necessitar.
A forma mais clara de mostrar que a expansão universitária é danosa é saber que tipo de estudante está chegando a seus cursos, e a que cursos eles estão chegando. Os países desenvolvidos sabem há séculos que a expansão da educação deve ser no ensino fundamental e médio, de caráter universal, o que concede uma base sólida à sociedade e, ao mesmo tempo, a uma universidade que permita o acesso aos mais qualificados, sem discriminação de qualquer espécie, porque tiveram todos oportunidades iguais na escola pública. Não é o que está acontecendo. Aposentei-me, há um ano, como professor, depois de 45 anos de sala de aula, 38 dos quais na universidade, período em que acompanhei, dia após dia, a degradação do ensino público, sei, portanto, qual é o material humano que está chegando à universidade.
Note-se que a expansão maior foi para os cursos de Humanidades, onde a possibilidade de doutrinação é maior. Este foi um dos motivos por que me aposentei mais cedo, aos 65 anos de idade, quando poderia ter ido até os 70, dobrando-me à compulsória. A situação apontada por Platão no Górgias é que me levou à aposentadoria. Não há mais diálogo, senão uma necessidade de se calar a possibilidade de diálogo. Qualquer discordância é, de imediato, chamada de discurso de ódio. A argumentação de nada vale, o método científico foi deixado de lado e a ciência só é chamada a intervir, quando ela satisfaz às necessidades da doutrina. É frequentar um curso de Humanidades e constatar. Quando a militância ideológica entra por uma porta, a inteligência e o profissionalismo saem pela outra. Elas são incompatíveis.
Muitas pessoas falam com arrogância, por falta de conhecimento de causa, vilipendiando a ciência e criando argumentos frágeis, quando querem atacar alguém: terraplanismo, negacionismo ou sei lá o quê, que se inventa e que se repete sem senso crítico. Diga-se, claramente, que o negacionismo, além de ser termo vago que no seu esgarçamento pouco ou nada diz, juntamente com a criação de mentiras com aparência de verdade, é a prática constante dos governantes, todos eles, porque dizer a verdade os faria ser apeados do poder. Por regra, nenhum fala a verdade, nenhum deles. Quanto ao terraplanismo, que mal faz à saúde se alguém o defende? A ciência há muito, há mais de dois mil anos, já decidiu sobre isto. A terra não é plana, como também não é redonda, a terra é esferoide, tendo em vista que tem volume. Mas dizer que a terra é plana, defender essa posição não muda o fato. A ciência é a ciência e ela só será superada por mais ciência, não pela loucura ou pelo voluntarismo dos loucos de plantão. Deveríamos nos concentrar em coisas sérias, como a discussão de um projeto de Estado para a Educação, contemplando todos e exigindo a permanência na sala de aula por pelo menos 8 anos, durante 8 horas por dia. À falta de uma propensão para a verdade e para ações concretas, fica-se distraindo a população com discursos retóricos tão pomposos quanto tolos, que sempre resultam em perda de tempo e provocam, deliberadamente, o atraso.
Platão é bem claro a respeito da natureza da filosofia, em contraposição à retórica. A filosofia é um saber, cuja técnica tem o que entregar: o amor pela descoberta da verdade, que produz o conhecimento e a justiça. Não é à toa que o filósofo, longe de ser “o que ama o saber” é “aquele que ama saber”, diferença sutil, que nem todos conseguem alcançar. Já a retórica, não é conhecimento, nem é técnica, porque não pode entregar o que promete: o conhecimento sobre todas as coisas. Tendo como base apenas palavras, a retórica, como a sofística, é apenas adulação, dando a falsa impressão do conhecimento, mas que não resiste a uma investigação mais acurada,
A universidade, que teria um papel importante na produção do saber, encontra-se, atualmente, moribunda, ignorando a verdade, inebriada na vaidade dos títulos, da burocracia da pontuação, do ativismo político partidário e do ativismo cultural. Quem ousar desafiar a doutrina vigente ou a suposta necessidade de inclusão, na verdade um instrumento de segregação, estará fora e ameaçado de processo.revelando a sua ignorância sobre o próprio assunto de que afirma ter o domínio. Insista-se no debate argumentativo, como Sócrates faz com Calícles, e ver-se-á o debatedor ficar preso a uma tautologia, numa repetição sem fim de chavões.
Os que se utilizam da retórica falam sempre em vista do grande bem, dizendo ter a constante preocupação de tornar os cidadãos melhores. Mas isto não passa de discursos, pois suas ações são bem diferentes. Na realidade, os retóricos correm atrás dos favores populares, sacrificam o interesse público a seus interesses privados e tratam as pessoas como crianças às quais querem agradar antes de qualquer coisa, sem se inquietar de saber se as tornam melhores ou piores com esses procedimentos, é o que diz Platão, com muita atualidade (Górgias, 502e-503a).
Observe-se que Platão e Aristóteles não são estudados na academia com a intensidade e a profundidade apropriadas. Eles foram os responsáveis pela fundamentação da república. Platão lhe deu a base filosófica, com a busca incessante da justiça, própria de um estado sadio (República, 372a); Aristóteles lhe deu as leis, com a Constituição de Atenas, a primeira do mundo ocidental. Não são estudados com a desculpa mais ridícula: eles estão ultrapassados, como estão ultrapassados todos os livros de economia... Um livro como a República, por exemplo, deveria ter os seus princípios traduzidos, sem filosofice, na sala de aula, a partir da adolescência. O que se vê, no entanto, é diferente, muito diferente. Está longe de ser filosofia o que existe como disciplina no ensino médio.
A república moderna, inspirada no mundo grego, organizou-se a partir da Revolução Francesa; a democracia, com a guerra pela independência, no que hoje são os Estados Unidos. A existência de uma república democrática é a base do mundo livre atual, que não pode mais aturar o cerceamento da liberdade de expressão, constantemente ameaçada pelos que têm uma necessidade obsessiva de controlar os outros. Tomemos a França como exemplo.
A Revolução Francesa (1789), baseada nos ideais de Liberdade, Igualdade, Fraternidade, cedo descamba para o desejo de controle das pessoas, pomposamente chamados de cidadãos – Cidadão X, Cidadã Y –, instaurando um período de terror (1793-1795), em momento já republicano. O Terror criou a poderosa Convenção, cujos braços opressores eram o Comitê de Salvação Pública e o Comitê de Segurança Geral, cerceando o direito ao contraditório, perseguindo, denunciando, prendendo e matando. Que o diga Danton, revolucionário de primeira hora, guilhotinado sob o jacobinismo de Robespierre, o próximo a provar do mesmo remédio que receitara a seus inimigos, a maioria revolucionários de 89.
Passado esse período, o desejo de controle se renova e a revolução descamba para o consulado em vida, com Napoleão (1799-1804) e, em seguida, para o império (1804-1815), ao final do qual se restaura a monarquia com Luís XVIII (1814-1824), Charles X (1824-1830) e Luís Filipe (1830-1848). Segue-se um pequeno período de restauração da república, entre 1848-1852, mas, não resistindo a novo desejo de controle, é substituída por um golpe de Estado (1851), que resulta no Segundo Império (1852-1870), tendo à frente Napoleão III, o mesmo Luís Bonaparte, que fora eleito presidente, em acordo, a partir da deposição de Luís Filipe (1848). Nova república se instaura, depois da Comuna de Paris, em 1870-71, e consegue resistir até a invasão da Alemanha nazista, quando se vê a república colaboracionista de Vichy (1940-1944).
Liberada a França (1944) e terminada a Guerra (1945), instaura-se a quinta república francesa, que, cheia de concessões e apoiada em retóricas adulatórias, como diria Sócrates, vê-se, hoje, de joelhos e num impasse, impotente, diante da onda violência que varre o país de cima a baixo, violência oriunda dos discursos vazios para agradar a terceiros, ignorando os princípios básicos da democracia republicana de igualdade de direito e de deveres para todos. É esta mesma França que, em plena liberdade republicana e democrática, após a Segunda Guerra, mantém colônias no norte da África e em outros pontos do globo, e provoca uma carnificina na guerra contra a Argélia. O presidente atual, apesar do nome, Macron (grande, em grego) é fraco e pequeno, adotou cortar a internet, como uma das medidas, para evitar as manifestações que tomam conta do país. É o marido enganado, colocando a culpa no sofá.
Sem o equilíbrio na alma, os oradores não podem proporcionar justiça e sabedoria ao corpo do Estado, o que leva à sua degradação. Relutantes na distribuição da verdade, os Cálicles se multiplicam e, ferrenhamente, se fecham nas suas equivocadas doutrinas de convicções distorcidas. Assim, ao se inverter a proposição básica de Sócrates, em que a busca do agradável, como de todo o resto, deve ser em favor do bem, e não a busca do bem para dar suporte ao agradável (Górgias, 500a), também se subverte a ordem lógica do bem-estar social. A busca do bem-estar social deve estar fundamentada na justiça, não se utilizar de uma justiça de pretexto, para fundamentar o bem-estar social. Os retóricos de toda a sorte, que vivem bem e confortáveis, em meio a uma multidão de miseráveis, de quem eles expropriam tudo, até a dignidade, podem dizer, com toda a pompa, que estão ali por justiça. O que constatamos, infelizmente, é o fato irrefutável de que a democracia que se propaga é mais de palavras e não de ações ou de real transparência, invertendo o princípio básico do res, non verba.
A universidade, que teria um papel importante na produção do saber, encontra-se, atualmente, moribunda, ignorando a verdade, inebriada na vaidade dos títulos, da burocracia da pontuação, do ativismo político partidário e do ativismo cultural. Quem ousar desafiar a doutrina vigente ou a suposta necessidade de inclusão, na verdade um instrumento de segregação, estará fora e ameaçado de processo. O que se vê, na realidade, é uma sórdida campanha, que conta com o apoio de falsos intelectuais e falsos professores, no sentido de transformar a verdade em mentira e a mentira em verdade, com o falso pretexto de se defender a democracia que, no atual contexto da política brasileira, não passa de uma palavra banalizada e esvaziada de sentido, usada para enganar os incautos.
Platão nunca foi tão atual e tão necessário: “A prática da justiça é virtude e sabedoria; a injustiça é vício e ignorância (República, 350d)”.