O título deste artigo é parte de uma pergunta de Victor Hugo, no célebre prefácio para a sua tragédia Cromwell (1825), conhecido, posteriormente, como “Do grotesco e do sublime” – “Or, qu’est-ce que le choeur?”.
Em uma página desse prefácio, Victor Hugo diz mais sobre a tragédia do que muitos estudos alentados sobre o assunto. Ao mesmo tempo, há uma aproximação entre as ideias do escritor francês
Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff
Na apresentação do volume O que é uma tragédia Ática? (Qu’est-ce qu’une tragédie Attique?, tradução de Alexandre Hasnaoui; Paris, Les Belles Lettres, 2001), introdução que Willamowitz escreve para a sua principal obra sobre a tragédia grega, Caroline Noirot diz da importância do filólogo alemão (op. cit., p. VII, em tradução nossa):
“Em 1928, Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff era professor na Universidade de Berlim. Do alto de sua cátedra, o oráculo reinava como mestre sobre os estudos clássicos.”
A tradução francesa diz respeito ao segundo capítulo daquela que é considerada a principal obra de Wilamowitz, Euripides Herakles (Héracles, de Eurípides, 1889), e é, como diz o seu título em alemão, Einleitung in die attische Tragödie, uma introdução à tragédia ática. Como capítulo autônomo da obra, a sua tradução para o francês, em forma de livro, operou-se sem perda de sentido.
Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff
Hugo mergulha no âmago da tragédia, vendo o coro como elemento imprescindível à fabulação. Sem o que o coro professa, a fala e a ação dos personagens tornar-se-iam incompreensíveis. Deve-se considerar o coro como um dos atores (ὑποκριτῶν),
Victor Hugo
Constituída para ser encenada em três ambientes – a orquestra, em que se movimenta o coro; o proscênio, em que atuam os personagens; a cena, onde ocorrem as ações que não devem ser mostradas ao público, apenas relatadas, como assassinatos, suicídios, mortes violentas, incestos... –, a tragédia criou um quarto ambiente, menos óbvio, quase sempre esquecido e negligenciado pela crítica: o espaço dos espectadores. Trata-se de local importante, pois é com o público, tanto quanto com os atores, que se dá a interação do coro, daí a sua localização num local mais baixo do que o proscênio, porém mais próximo do espectador, que o circunda, fazendo suas evoluções em torno do altar de Dionisos, momento em que se ressalta o elemento do sagrado, o inefável, revelado, na dança cantada do coro.
Antifeatro de Epidauro, GréciaMilton Marques Jr.
“O drama ático tornou-se na educação e na instrução do povo, um complemento da epopeia, visto que a contribuição do lirismo era minúscula e que a da elegia se reduzia a algumas sentenças muito bonitas, mas bem triviais. Homero e os trágicos eram o Moisés e os profetas da Hélade.”
Consciente dessa importância, Victor Hugo, ele mesmo um dramaturgo e tragediógrafo, define o coro de maneira fático-metalinguística, antecipando a visão de Wilamowitz (Cromwell, Paris, Garnier-Flammarion, 1968, “Préface”, p. 65, tradução nossa):
“Ora, o que é o coro, este singular personagem situado entre o espetáculo e o espectador, senão o poeta completando a sua epopeia?”
Representação do coro e do corifeu no teatro grego antigo
“Seu declínio era inevitável, a partir do momento em que o povo ático se liberou da legenda.”
Tendo a tragédia nascido da epopeia, mais um ponto de convergência entre Hugo e Wilamowitz, o autor de Les Misérables diz que “quando toda a ação, todo o espetáculo do poema épico passaram pela cena, o que resta, o coro toma para si” (p. 65),
Anfiteatro de Dionisos, Atenas
“O coro comenta a tragédia, encoraja os heróis, faz descrições, chama e expulsa o dia, rejubila-se, lamenta-se, algumas vezes faz o ornamento, explica o senso moral do assunto, elogia o público que o escuta.”
O que é ratificado por Wilamowitz (p. 96):
“A legenda heroica tornara-se a matéria do poema e o poeta apresentava partes isoladas dela a seu público, assim como Homero fizera, para o instruir e o educar.”
O senso moral do assunto, de que fala Victor Hugo, é o que Wilamowitz chamou de legenda, que podemos traduzir também por mito, no sentido do termo grego, de uma narrativa que procura explicar, de modo concreto e possível, para aquele momento, o mundo. Segundo Wilamowitz, “a legenda reúne antes de qualquer coisa a memória viva de um povo” (p. 99), estando, “lado a lado com a religião” (p. 105), tendo em vista que “a tragédia era uma parte integrante do serviço religioso do culto dionisíaco” (p. 122).
Encenação no teatro grego antigo ▪ Fonte: shpl
“Homero havia preparado um imenso banquete para o povo e Ésquilo lhe servia certos pratos.”
Veja-se o que Hugo diz sobre a relação epopeia/tragédia e sobre Homero, este rio imenso em que todos se desalteram (p. 65):
“Todos os trágicos antigos detalham Homero. Mesmas fábulas, mesmas catástrofes, mesmos heróis. Todos bebem no rio homérico. Sempre a Ilíada e a Odisseia. Como Aquiles arrastando Heitor, a tragédia grega gira em torno de Troia.”
Ora, das 32 tragédias que nos chegaram – 7 de Ésquilo, 7 de Sófocles e 18 de Eurípides – quase a metade, 15 peças, diz respeito, direta ou indiretamente, à guerra de Troia:
Ésquilo: a trilogia Oresteia, constituída por Agamêmnon, Coéforas e Eumênides;
Sófocles: Ájax, Electra e Filoctetes;
Eurípides: Andômaca, Hécuba, Electra, As Troianas, Ifigênia em Táuris, Helena, Orestes, Ifigênia em Áulis e Rhesos.
A tragédia Rhesos, de Eurípides, é a única que trata diretamente de um episódio da Ilíada, retomando o Canto X, conhecido como a Dolonia. Odisseus e Diomedes fazem uma incursão pelo acampamento troiano, à noite, de modo a saber a posição do inimigo que, de assediado, tornou-se assediador dos Argivos. Eles encontram com Dólon, guerreiro troiano,
Diomedes mata Rhesos / Ulisses rouba os cavalos do acampamentoBernard Picart, 1710
Apesar da confluência de pensamento, acredito ser improvável Wilamowitz ter lido Hugo, por conta das relações sempre tensas entre Alemanha e França, um dos fatores por que o livro do filólogo alemão só é traduzido para o francês, em 2001, apesar de publicado em 1889. A percepção de Victor Hugo, como crítico, se erige a partir do seu conhecimento de leitura, do grande escritor que já era, apesar de ter apenas 23 anos no momento em que escreveu a tragédia Cromwell, fazendo do seu prefácio um texto imprescindível a quem quer que deseje estudar literatura e, mais precisamente, os gêneros literários.
Assim como diz Hugo, a respeito do detalhe homérico ampliado pelos tragediógrafos, o mesmo deve fazer o crítico ou o leitor-crítico, quando com ele se depara em sua leitura: atentar para o detalhe, pois é nele que se encontra a medula, substância que nutre a ossatura da obra de arte. Embora a comunhão entre Hugo e Wilamowitz seja das mais felizes, pelo fato de que “a poesia e a filosofia jamais poderão prescindir do filólogo, pois só ele tem as chaves que abrem as portas da compreensão da tragédia ática” (Wilamowitz, p. 140), nem sempre é assim que se dá o encontro entre o ficcionista e o crítico. Aquele, o mais das vezes, numa página sintetiza o que o crítico precisa de todo um livro para poder (mal) dizer.