Muito se ouve falar da Eneida como um poema épico cujo fundamento é homérico, daí as frequentes sugestões de dividir o texto do mantuano Virgílio em duas partes. Composto por 12 livros, os seis primeiros livros seriam uma retomada da Odisseia; os seis últimos, uma retomada da Ilíada. A divisão se justifica tendo em vista o fato de que o leitor constata claramente a existência de uma viagem do herói, na primeira parte, e uma guerra, levada a cabo pelo herói, na segunda. Esta constatação, no entanto, não determina a estrutura do poema, muito mais complexa do que a divisão proposta de um modelo homérico invertido – Odisseia/Ilíada. E, apesar de reconhecer a grandeza de Victor Hugo, credito aos seus 23 anos de idade, a infelicidade da referência a Virgílio, como astro de pouca monta, orbitando em torno de Homero. Homero seria a Terra e Virgílio, o seu satélite, a lua (prefácio de Cromwell, p. 87):
"Avec toute sa poésie, Virgile n’est que la lune d’Homère.”
Com toda a sua poesia, Virgílio não é senão a lua de Homero.
Não estamos negando que haja um modelo homérico. À época de Virgílio, prática que vem de muito antes e continuou após o poeta, Homero é o modelo a ser seguido. Todo poeta tinha necessidade de exercitar mais do que a emulação, um beija-mão ao grande aedo grego, por suas obras consideradas seminais para a cultura ocidental. Ressaltamos, ainda, que, neste ensaio, nos abstraímos, por inútil, de toda polêmica sobre a existência de Homero.Com toda a sua poesia, Virgílio não é senão a lua de Homero.
A discussão que nos move é mais prática e tem o sentido de trazer à tona a complexidade da Eneida, revelando a recriação de Virgílio, que não pode ser visto apenas como um imitador de Homero, conforme sugerem alguns e conforme se dá a difusão pelo vulgo. Digamos, para início de nossa conversa, que temos uma outra compreensão da Eneida, para a qual propusemos, há algum tempo, uma divisão diferente. O poema de Virgílio, mesmo considerando as duas partes maiores, a da viagem (Livros I-VI) e a da guerra (Livros VII-XII), revela uma estrutura que admite uma divisão triádica, a saber: As Provações (Livro I-IV), Os Rituais (Livros V-VIII) e A Guerra (Livro IX-XII). É evidente que rituais e guerra farão parte das Provações, mas estas são o cerne da primeira parte da estrutura proposta. O mesmo pode ser aplicado para as demais partes: provações e guerra farão parte dos Rituais, assim como provações e rituais farão parte da Guerra.
Sem entrar em explicações muito minuciosas sobre cada uma dessas partes da estrutura proposta, o que demandaria muito tempo, podemos dizer que As Provações são o rito iniciático de um novo herói, aquele que deve submeter-se a uma viagem cheia de perigos, de modo a construir a tenacidade e a têmpera necessárias ao fundador de uma civilização. Vê-se, portanto, que Eneias, que já é indiscutivelmente um grande herói, tendo demonstrado a sua Virtus – a qualidade de excelência guerreira – durante a guerra de Troia, foi escolhido pelos deuses para atingir outro nível de heroicidade: o de fundador de civilizações, dentre elas a civilização romana, que irá dominar o mundo. Profecia que se encontra, seja nas palavras de Júpiter a Vênus, aflita pelo destino do filho, “imperium sine fine dedit” (Livro I, verso 279, “eu concedi aos romanos um império sem fim); seja nas de Anquises a Eneias, ratificando a glória romana (Livro VI, versos 851-853, tradução nossa):
Tu, Romano, deves reger os povos com o poder, lembra-te
(estas serão tuas artes), e, com a paz, impor o costume,
poupar os que se sujeitarem e submeter pela guerra os soberbos.
Os Rituais consolidam a personalidade de Eneias como herói civilizador, na obediência e no respeito aos deuses, e ao pai, Anquises, este divinizado (veja-se o Livro V), justificando a escolha de Eneias pelos deuses, preconizada no Canto XX da Ilíada (versos 292-308, tradução nossa), episódio que teria dado a Virgílio a deixa para escrever a Eneida:
“Imediatamente, [Posídon] diz aos deuses imortais:
Ai de mim! sinto uma grande dor por Eneias do grande coração,
que depressa baixará ao Hades, sob o braço do Pelida,
Por ter sido persuadido pelas palavras de Apolo, o que fere de longe.
Tolo! Não é ele que vai socorrê-lo contra a morte ruinosa.
Mas qual a necessidade de que ele sofra estas dores,
inutilmente, pelos males dos outros, ele que sempre ofereceu
presentes aos deuses que habitam o vasto céu?
Eia, vamos subtraí-lo da morte e levá-lo conosco,
se por um lado, o Cronida se indignaria de ver Aquiles
matá-lo, por outro lado, o destino deseja vê-lo salvo,
para que não pereça, sem posteridade e aniquilada,
a raça de Dárdanos, que, dentre todos os seus filhos,
nascidos dele e de uma mortal, o Cronida mais amou.
Já a raça de Príamo, o Cronida odeia.
É o poderoso Eneias que reinará, doravante, sobre os troianos,
ele e os filhos de seus filhos, que nascerão em seguida.”
A Guerra é a ratificação do herói, conquistando as terras de Hespéria, no Lácio (Latium), região em que Eneias fundará o reino Lavínio, de onde surgirão as muralhas da altiva Roma (Livro I, verso 7, altae moenia Romae), após a vitória sobre Turno, rei dos Rútulos (v. Livro XII).
Expliquemos, então, em que difere, no conteúdo, a divisão triádica da divisão em duas partes. Comumente, a divisão em duas partes é vista de maneira simplista, até mesmo simplória, de mera inversão das duas epopeias homéricas, como se Virgílio, sem qualquer impulso criativo, tivesse se submetido a uma imitação servil a Homero. Não se trata disso. Iniciemos dizendo que a viagem de Eneias é muito diferente da viagem de Odisseus ou Ulisses, como é mais conhecido. Odisseus se apresenta, ele próprio, aos Feácios e a Polifemo, o Ciclope, como “destruidor de cidadela” (Odisseia, Canto VIII, πτολιπόρθιον, verso 504) e como “destruidor de Ílion” (Odisseia, Canto IX, Ἴλιον ἐξαλάπαξαν, verso 495). Eneias, ao contrário e conforme já vimos, é um herói fundador de civilizações. Ao deixar a guerra de Troia, impelido à fuga pelos deuses (fato profugus, Livro I, verso 2), num momento em que ele se empenhava na luta em defesa da cidade invadida, o herói, em sua chegada ao Lácio, já não deseja a guerra.
Odisseus e Eneias fazem, cada um, a sua viagem. Ambas, no entanto, também são diferentes, mesmo que elas se realizem no limite do Mediterrâneo. Dentro do gênero épico, a Odisseia se enquadra numa classe especial, conhecida como nóstoi (οἵ νόστοι), as viagens de retorno dos heróis de Troia. Terminada a guerra, Odisseus retorna a ítaca, enfrentando as adversidades que todos conhecemos. Retorno difícil que se alonga por dez anos, embora ele saiba exatamente de onde está saindo para onde deve chegar, o caminho que deve seguir e as ações que deve realizar, dentro da medida e da reflexão (μέτρον e σωφροςύνη), conceitos caros ao mundo grego, para conseguir atingir o seu objetivo.
A viagem de Eneias não é de retorno, é de busca, ainda que os seus ancestrais, na figura maior de Dárdanos, sejam originários do Lácio (Livro III, versos 167-168):
Estas são as nossas próprias casas, dali Dardanus nasceu
e o pai Iásio, nosso ancestral, de que ele é o princípio.
Diante da inexorável destruição de sua cidade, Eneias, relutante, é, como sabemos, obrigado pelos deuses a fugir, com a missão de fundar uma nova Troia. Vênus, sua mãe, lhe mostra a real situação: Troia não está sendo destruída por causa de Helena ou por causa de Páris, mas por causa da “inclemência dos deuses” (inclementia diuom, Livro II, verso 602). Eneias deverá sair em busca de um destino geográfico que ele não sabe onde fica, embora, ao longo de uma viagem de 10 anos, ele seja orientado, aqui e acolá, principalmente por Apolo, através de seus vários oráculos – os Penates de Troia, as Harpias, o sacerdote Heleno. Em sua errância, Eneias, em cada ponto em que aporta, funda uma cidade – Trácia, Creta, Drépano – ou ajuda na construção, conforme vê-se no Livro IV, quando, na Líbia, se empenha, ao lado de Dido, na construção da futura Cartago.
Mesmo com a profecia de Creúsa, sua esposa, que lhe aparece sob a forma de uma visão infeliz (infelix simulacrum, Livro II, verso 772), para dizer ao herói como ele chegará às terras de Hespéria (terram Hesperiam uenies, verso 781), falta-lhe a clareza que ele só terá durante a sua permanência no Épiro, quando da profecia de Heleno, o único filho de Príamo a escapar da morte em Troia, por ser sacerdote de Apolo. Heleno revela o destino de Eneias nas terras de Itália, ao chegar em um porto de Ausônia (Livro III, verso 378), antigo nome da Itália. Eneias, no entanto, terá de aportar antes em Cumas, passando pelo Averno (Livro III, versos 441-442), na parte ocidental da Península Itálica, abaixo do Lácio, numa viagem por longos e ínvios caminhos, e bordejando longes terras (Livro III, verso 383).
Diverso também é o objetivo de Eneias ao fazer a catábasis, a famosa descida aos infernos, sempre comparada à de Odisseus. O herói grego, na realidade, faz uma aproximação ao Hades, ficando no seu limiar, chamando as almas que lhe interessam, dentre elas, a mais importante, Tirésias, para que ele lhe diga como proceder na volta a Ítaca (Odisseia, Canto XI). Eneias faz uma catábasis completa, descendo e percorrendo os vários antros infernais, por ela ser parte de seu ritual heroico. A sibila de Cumas vai instruir o herói sobre o que ele deve fazer, apontando-lhe uma rota propícia (Livro III, cursus secundos, versos 458-460), para termo de sua viagem. É no termo da viagem que o herói, já devidamente consagrado e tendo se tornado o pai Eneias, começará a empreitada de construção de uma nova Troia, que não poderá acontecer se não for pela guerra. O seu pai, Anquises, complementará com mais detalhes a profecia da Sibila, mostrando-lhe a história de Roma e o destino que o aguarda, como herói civilizador (Livro VI). Num magistral jogo paradoxal, Eneias, na sua catábasis, tem mais clareza na obscuridade do que nas viagens do mundo terreno, onde a obscuridade dos caminhos errantes se impõe (Livro I, versos 30-32, tradução nossa):
Os Troianos, restos dos Dânaos e do implacável Aquiles,
[Juno] mantinha longe do Lácio, por muitos anos
erravam pela ação dos fados, ao redor de todos os mares.
A Guerra nos mostra que as motivações de Odisseus e de Eneias também são diferentes. Em primeiro lugar, não se trata de um exército de coalizão, como ocorre na Ilíada, que vai a Troia com o sentido de vingar a honra de Menelau, um dos seus chefes supremos. Motivação que levará a glórias individuais, como as de Aquiles, Pátrocles e Heitor, na Ilíada, e à suprema glória de Odisseus, na Odisseia, celebrado ainda em vida pelos aedos e rapsodos. No caso de Eneias, vemos um herói com a missão específica de fundar uma cidade gloriosa, sob os auspícios dos deuses, como a que ele deixara, Troia. Mais do que isso, trata-se da construção de uma nova Troia, para a qual são transferidos os tesouros e os Penates, conforme se vê no Proêmio (Livro I, versos 5-6), na profecia de Heitor a Eneias (Livro II, versos 293-295), na fuga de Eneias, conduzindo, nos ombros, o pai, que segura os Penates (Livro II, versos 717-720, 804), e já no mar, seguro da sanha dos Argivos, no início do caminho errante (Livro III, versos 1-12).
Eneias não invade, não saqueia, não destrói ou se vinga, como se dá no âmbito da guerra de Troia, conforme saberemos na Odisseia (Canto VIII). O herói troiano chega à terra do rei Latino, para, com a sua intervenção, tirar o Lácio da obscuridade e levá-la aos astros (Livro I, versos 286-288, tradução nossa):
Nascerá um troiano, de pulcra origem, César,
Cujo poder chegará ao Oceano e a fama aos astros,
Júlio, do grande Iulo, descende o seu nome.
A maior das diferenças, contudo, encontra-se no relato de Eneias sobre a destruição de Troia. Recapitulemos: a Eneida tem uma estrutura de livros proporcional aos Cantos da Odisseia. São 24 Cantos nesta e 12 Livros naquela. Na mesma proporção, encontra-se a narrativa dos heróis. Cabe a Odisseus narrar as suas próprias aventuras, em primeira pessoa, na Odisseia, por quatro Cantos (IX-XII), numa narrativa metadiegética (narrativa dentro de uma narrativa, com narrador autodiegético, ou que narra a sua própria história); a Eneias é concedido o direito de narrar a sua própria história por dois Livros, mantendo a proporção conhecida, 24 estão para 12, assim como 4 estão para 2. As visões, no entanto, são bem diferentes. Odisseus narra a história do vencedor, do conquistador, do homem que ganhou fama, sendo assunto da lira dos aedos. Como herói individual, Odisseus atinge a glória imperecível, a kléos áfthiton (κλέος ἄφθιτον), em vida. Eneias é um herói coletivo, representante de um povo, guia e pai de uma nação destruída, na busca de sua refundação. A glória será atingida, mas só após o seu arrebatamento e muitos séculos depois. Se a fama de Eneias chegou a todos os povos, não foi a do herói individual, mas a do herói coletivo. E foi a fama das dores do seu povo, conforme ele próprio vê, chorando, nas paredes do templo de Juno, que está sendo erguido em Cartago por Dido (Livro I, versos 459-460, tradução nossa):
Parou e chorando, disse “Há um lugar, Acates,
uma região dentre as terras, que não esteja cheia de nossas penas?”
Virgílio haure a seiva homérica, mas esquiva-se da exaltação da glória argiva, para centrar a narrativa de acordo com o ponto de vista do vencido. É a visão doída de quem se vê expulso da terra querida, de não poder defendê-la, de perder a mulher, de ver a cidade saqueada, incendiada, de muros desabando, e ainda ter de se aventurar, a mando dos deuses, numa viagem errante por terra e por mar, enfrentando o perigo maior de nova guerra para reconstruí-la. E como ponto culminante das provações por que passa, Eneias perde o pai. É na condição de pai dos Troianos, que ele chega à península Itálica, o primeiro dentre todos os que ele lidera e ainda haverá de liderar (primus, Livro I, versos 1-3, tradução nossa):
Eu canto as armas e o herói, que das margens de Troia,
em fuga pelo fado, chegou primeiro à Itália e aos Lavínios
litorais.
Virgílio, enfim, não imita Homero. E se o faz é no sentido aristotélico do termo, de recriação de uma possibilidade, numa visão que já não é a do aedo helênico, mas a do poeta latino. Mais do que recriar Homero, Virgílio o complementa, preenchendo a lacuna da guerra de Troia, que não encontramos na Ilíada e é apenas entrevista na Odisseia; complementa com a bela narrativa do Livro II, ao desenvolver, ao longo de 804 versos, a destruição da cidade, tendo como instrumento o prodígio infeliz (monstrum infelix, verso 245), a terrível máquina fatal de guerra (fatalis machina, verso 237), em forma de um cavalo de madeira, falso presente dos Argivos a Minerva. Como um acréscimo, o poeta mantuano funde a ilíada e a odisseia, guerra e narrativa, neste Livro II, e nos proporciona, com o relato de Sínon, a primeira grande teoria da verossimilhança: tudo o que Sínon diz aos troianos é ditado pela necessidade aristotélica e se parece com a verdade, mas não é a verdade.Em suma, temos muito, ainda, que aprender com Virgílio.