É preciso equilíbrio, coragem e fígado para abordar tema como o que se seguirá, pois ele assombra! Mas, é preciso falar! E é tão óbvia ...

Dores e infortúnios

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É preciso equilíbrio, coragem e fígado para abordar tema como o que se seguirá, pois ele assombra! Mas, é preciso falar! E é tão óbvia essa necessidade que não tentarei explicar.

Contudo, ninguém além do prolífero escritor e ativista judeu-romeno Ellie Wiesel (Romênia 1928 - Nova York 2016), sobrevivente de Buchenwald e prêmio Nobel da Paz de 1986, teria tanta legitimidade para oferecer argumento mais convincente:

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Ellie Wiesel
“Jurei nunca ficar em silêncio quando e onde os seres humanos tenham que suportar sofrimento e humilhação. Temos sempre de escolher um lado. A neutralidade ajuda o opressor, nunca a vítima. O silêncio encoraja o torturador, nunca o atormentado”.

Portanto, não ocuparei os espaços de reflexão e indignação do leitor diante de tão inomináveis e indigestos fatos que maculam a história da humanidade: “os campos de concentração”. Tenham eles a história que tiverem; tenham eles surgido na Polônia, na Alemanha, no Ceará, em Aleppo, em Asinara, ou em qualquer lugar do planeta. Tenham eles sido instalados por ordem de tirano europeu, do médio oriente ou de incauto governador de estado no Brasil, decisões do tipo são absurdas e grave insulto ao ser humano.

Os longos dias de viagem marítima, do Rio de Janeiro a Fortaleza, em busca do campo de concentração de flagelados da seca de 1932, instalado em Senador Pompeu, foram de grande sofrimento.
João Fortunato, não sabia o que iria encontrar no campo de Patu e sofria! Sabia apenas que membros de sua família estavam confinados ali. E mais horrorizado ficou ao ser informado de que outros campos tinham sido instalados, estrategicamente, em diversos municípios do Estado e na capital Fortaleza com o mesmo objetivo.

Ao Rio de Janeiro onde morava, havia duas décadas, chegavam notícias aterrorizantes da seca daquele ano em sua cidade natal. Há anos longe da casa dos pais, João Fortunato, de fato, não estava inteirado do que ocorria em Senador Pompeu. O cenário que encontrou e a gravidade dos problemas humanos que constatou o aterrorizaram. Desde 1915, já se tinha notícia da instalação de campos de concentração de retirantes, mas, à época João Fortunato, embora rapazola, já havia deixado o Ceará. Por isso, desconhecia o assunto.

Afirma-se que durante o ano de 1932, mais de 16 mil flagelados da seca teriam sido aprisionados somente no “curral do governo”, em Senador Pompeu. Ironicamente, essa era a denominação que o povo dava a tais campos no Ceará, estado ciclicamente marcado por secas (e, consequentemente, por desemprego, miséria, fome e falta de perspectivas).

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Os clássicos estudos do “clima do Ceará” realizados pelo engenheiro ferroviário inglês Francis Reginald Hull (Londres, 1872 - Fortaleza, 1951), abordam com profundidade a seca como fenômeno climático cíclico, com largo poder de repercussão. Raquel de Queiroz, no livro O Quinze, e Rodolfo Teófilo, em A Fome, a abordam como fenômeno social devastador. Nas minhas graduações, no Instituto de Geociências da Universidade Federal do Ceará (1966-1971), tive a oportunidade de ser aluno do seu filho, o professor Julian Hull, um exaltado continuador dos estudos e pesquisas do pai.

Ao chegar às portas de entrada do campo, perplexo, ergueu os braços para os céus, João Fortunato curvou-se, lentamente, até o chão e ajoelhado beijou a terra árida e quente, e abatido chorou como nunca havia chorado. – Diante do que começava a ver, exclamou: ⏤ quanta monstruosidade!

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Ceará, 1932: os retirantes, atingidos pelo flagelo da seca, eram detidos e confinados em campos de concentração no interior do estado, para que não se dirigissem à capital, Fortaleza, em busca de condições de sobrevivência. ▪ Fonte: anacaona.fr
Em Senador Pompeu, deixara apenas o irmão a quem agora procurava. Pai e mãe haviam morrido dois anos antes da sua partida para o Rio de Janeiro, onde ingressaria na Marinha do Brasil, pelas mãos de um tio-padrinho, irmão de sua mãe, que já pertencia a essa força nacional. Fedentina, nuvens de poeira, barulho e vaivém de gente conferiam ao local atmosfera de hecatombe. De fim do mundo! Durante o dia os confinados ardiam sob o calor escaldante e brigavam por uma nesga de sombra nos poucos alpendres em derredor dos prédios e nas poucas árvores que existiam no campo repisado. As regras no campo de concentração eram rígidas: homens para um lado e mulheres para outro.

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Campo de concentração do Patu, em Senador Pompeu, Ceará, 1932 ▪ Fonte: Valdecy Alves
No dia seguinte, João Fortunato decidiu ir ao campo de concentração trajado com sua farda de gala para “impressionar e facilitar”, afirmou. Logo percebeu cenas pesadas. De mãos estendidas, farrapos humanos clamavam desesperadamente por comida, água de beber, para o banho e para a lavagem de algum trapo das crianças de colo. Os chãos do lugar eram de cascalho grosseiro, não proporcionando qualquer conforto a quem os ocupava. A fome era tanta que, em desespero, as pessoas se punham a grunhir como porcos em chiqueiros, até tombarem semimortas.

Vendo tudo isso e ainda sem saber o que o esperava, João Fortunato exclamou: ⏤ “Como permanecer vivo num lugar como este”? E estarrecido, se questionou atônito:

⏤ “por que eu não vim antes”? “Por que”? “Será que encontrarei meu irmão”?

Por decisão de autoridades públicas, a título de duvidosa proteção da capital, milhares de pessoas esfarrapadas, doentes, famintas e sedentas, estavam confinadas, ali, em sertão de calor escaldante, entre cercas, como se fossem bestas aprisionadas.

Alegava-se de forma rude, autoritária e desrespeitosa à dignidade humana que o propósito destes abjetos campos não era outro que o de evitar transtornos à capital, a essa altura bastante afetada com a invasão de flagelados vindos de diferentes lugares.

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Campo de concentração do Buriti, na cidade do Crato, Ceará, 1932 ▪ Fonte: EBC
E triste, o que ocorria em Senador Pompeu se reproduzia em proporções semelhantes nos campos de Crato, Ipu, Quixeramobim e Cariús. A cidade de Fortaleza instalara um primeiro campo já na grande seca de 1915, no Alagadiço [atual São Gerardo]. Os campos do Matadouro [Otávio Bonfim] e do Uburu [Pirambu] foram instalados em 1932. A prática, no Ceará, antecedeu ao que se veria pouco depois em Auschwitz, Belzec, Chelmno, Majdanek, Sobibor e Treblinka, na Polônia. Sem muito esforço e com o auxílio da internet, os pesquisadores ainda encontram vestígios da memória arquitetônica dos famigerados abrigos do Campo de Patu.

Conta-se que o trem que ia do Crato a Fortaleza foi oficialmente proibido de parar em Senador Pompeu. O desespero tomou conta da pequena estação ferroviária local. Muita gente insistia em embarcar, em “busca da sobrevivência e para fugir desse inferno”, como se referiu aos campos, o tenente Fortunato. A capital do estado seria a tábua de salvação, pensavam.

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Campo de concentração do Pirambu, em Fortaleza, 1932 ▪ Fonte: EBC
No primeiro dia em que foi ao campo, João Fortunato tentou obter informações sobre o irmão e sobre alguém da sua família que ali estivesse confinado. A portaria do campo de flagelados não o atendeu. Os esforços das primeiras horas foram em vão. Os controladores do lugar não permitiram sua entrada, para uma busca pessoal. Alegaram que ali já estavam albergadas mais de 10 mil pessoas e não era possível prestar informações ou localizar alguém de uma hora para outra.

Muito mais por deferência ao militar João Fortunato, do que por qualquer outro motivo, explicaram-lhe que não contavam com organização adequada para isso. Mas, anotaram o nome do irmão do procurado e o orientaram a voltar no dia seguinte, à mesma hora.

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Dados divulgados no jornal O Povo (Fortaleza), edição 20.06.1932. ▪ ilustração: DG'Art
Ainda cansado da extenuante viagem que fizera do Rio a Fortaleza, e em seguida, de Fortaleza a Senador Pompeu, entre triste e resignado, João Fortunato rendeu-se. Mas, ao constatar tanta desorganização, velho filme lhe passou pela cabeça: seus anos de Exército Brasileiro. E com orgulho, falou para todos ouvirem, de que no Exército aprendera a ter senso de disciplina e organização e, por isso, era difícil admitir o que estava presenciando.

E mesmo indignado, saiu dali disposto a retornar o mais cedo possível no dia seguinte. Viera de longe, tinha grande afeto pelo irmão e resgatá-lo, e à família, era imperativo. E naquele sofria muito, pois desconfiava de que não os encontraria vivos.

Terminou o dia destruído por dentro, pois mais um dia se passara sem saber quantos de uma família de seis iria resgatar. Esse era o tamanho da família do irmão ali abriga, segundo os registros de que tomou conhecimento na portaria do campo: Severo Gonçalves Coelho, Maria das Dores Gonçalves e os filhos, todos menores, José Camilo, Misael e Sérgia.

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Campo de concentração do Patu, em Senador Pompeu, Ceará, 1932 ▪ Fonte: Valdecy Alves
Lamentou não ter podido vir do Rio de Janeiro um pouco antes, em socorro do irmão. O navio em que viajou até Fortaleza fez muitas paradas: Vitória, Ilhéus, Salvador, Recife, Mamanguape, Aracati, todas com longas demoras para embarque, abastecimento, desembarque de passageiros e recargas.

João Fortunato saiu do campo em companhia de outras pessoas que também buscavam parentes e foi procurar uma pensão no centro da cidade. Não conseguiu dormir direito. A noite foi de ansiedade e muita briga com fantasmas de toda ordem.

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Campo de concentração do Buriti, Crato, Ceará, 1932 ▪ Fonte: Arquivo Nacional, via EBC
Às cinco da manhã já estava de pé. Tomou o café magro da pensão e rumou para o campo de flagelados. Sua intenção era pegar um bom lugar na fila de atendimento. Recebeu a papeleta de controle de entrada N◦ 17. Sua vez não demorou tanto!

De propósito, localizou-se na fila em que o Atendente Geral era o mesmo do dia anterior, que logo o reconheceu. De ar descontraído, mesmo em meio aos horrores vistos no lugar, o Atendente transparecia tratar tudo aquilo de forma banal. Sem sentimentos! E até tentou brincar com o visitante:


E mostrando alguma erudição, exclamou: “tudo aqui parece ter-se banalizado. Valores e sentimentos são tratados com a frieza de quem já se calejou diante do que se tornou rotina, tenente João Fortunato”. “As pessoas parece que perderam a capacidade de se emocionar, mesmo diante de grandes dramas”, falou o atendente geral. E com certa indiferença concluiu: ⏤ “lamento muito, caro senhor, e digo isso consternado diante das suas dores e infortúnios”. E ainda teve a pachorra de dizer: ⏤ infelizmente Patu é assim, como o senhor viu e observou.
Nota Algumas partes deste texto foram ficcionadas. Sua elaboração baseou-se em recortes de uma história real, acontecida no sertão central do Ceará, em 1932. Pelo devido respeito, nomes e sobrenomes de família aqui evocados foram deliberadamente substituídos.

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