A justiça vem a ser a cura para a perversidade.
Platão, Górgias, 478d
Platão, Górgias, 478d
Sócrates falava na ágora para quem quisesse ouvi-lo, não só aos seus discípulos, como o filósofo Platão. A ágora era o lugar do discurso público, da arenga, por excelência, que suscitou, inclusive, o verbo agoréu (ἀγορέω), com o sentido de “falar em praça pública”. E Sócrates falava com categoria (κατεγορία), literalmente, “falar na ágora, de cima para baixo”, proveniente de ágora (ἀγορά), sobretudo destruindo, com argumentos, o discurso dos sofistas e retóricos. O modo como ele se dirige a Polos, amigo de Górgias, no diálogo que tem este nome, sobre a infelicidade que seria ele, Polos, deslocar-se a Atenas, lugar em toda a Grécia em que a palavra é mais livre, e ali fracassasse, por se ver ser privado de falar (461e), é emblemático. Não importa a discordância, o que importa é que a liberdade de se exprimir seja garantida.
Jesus Cristo falava aos pobres, aos ricos, a pecadores e a justos, a mulheres virtuosas e a prostitutas, a publicanos e a pescadores, a fariseus e a saduceus, a sadios e a enfermos, a judeus, samaritanos, sírios, cirenaicos, gregos e romanos, a comerciantes e a centuriões, a quem quisesse ouvi-lo e, sobretudo, a quem estivesse disposto a segui-lo, deixando de lado a sua vida anterior. Ele também falava com categoria, visto que o seu discurso, literalmente vinha do alto para o baixo, do céu para a terra, do divino para o humano, afinal de contas, ele era o verbo que se fez carne.
Ambos, Sócrates e Cristo, foram condenados à morte. Os argumentos variavam do desencaminhamento da juventude à descrença nos deuses; de sublevação das massas, à heresia de acreditar-se filho de Deus. Apenas pretexto para encobrir o incômodo que ambos causavam ao poder constituído, aos magistrados, à Igreja institucionalizada, a todos investidos de poder efêmero e que o exerciam discricionariamente, revelando a aversão ao contraditório, seja na democracia ateniense, então contaminada pelo vício do populismo tirânico de apego ao poder, seja no hebraísmo ortodoxo, sob o domínio do império romano.
Se ambos retornassem a este momento presente, seriam acusados de propagadores de fake news e de fascistas, por apenas exercerem o direito da liberdade de expressão e por expor, com ironia ou com crueza, os defeitos podres da sociedade e dos chefetes de plantão. E seriam acusados com os mesmos argumentos, de ataque à democracia e de abusar da heresia religiosa.
Ao falar da tragédia grega ática e da função do poeta trágico, membro da comunidade democrática ateniense, tanto quanto o coro de sua tragédia, formado por cidadãos atenienses, ambos poeta e coro, submetidos ao povo, tido naquela democracia como soberano sobre o Estado, Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff (1848-1931), filólogo alemão da universidade de Humboldt, em Berlim, diz o seguinte (O que é uma tragédia Ática, p. 67, tradução nossa):
“O Estado e seu soberano, ou melhor seu corpo vivo, o povo, constituem o poder supremo em Atenas.”
O livro de Wilamowitz, uma das grandes referências sobre a tragédia grega, é de 1889, situando o que é a arte numa sociedade democrática, e o poder que o cidadão, nesse modelo de sociedade, tem sobre o Estado. Parece, no entanto, que por mais que seja estudada e revirada pelo avesso, a modernidade não consegue entender o que é democracia, utilizando-a ou como discurso vazio de sentido ou clamando por ela, apenas quando ela se mostra conveniente às suas ideias. Desse modo, a democracia aparece sempre em choque com o sentido da palavra e, sobretudo, da ação que ela deve desencadear.
A lição que devemos guardar é a de que não há democracia sem que o povo seja soberano. Por isto mesmo, o poder democrático, na Atenas democrática, era submetido a rodízios, e o político que mostrasse o seu pendor populista era condenado ao ostracismo por dez anos. A lição fazia-se, então, mais clara: o vício do apego ao poder é incompatível a um sistema democrático.
A soberania do povo, a quem a escola deve ser aberta, como o foi em Atenas, se constrói ao se permitir o acesso igualitário à educação – eis a mais importante das atribuições do Estado democrático –, para que todos se tornem, de fato, cidadãos. Quando isto não acontece, o resultado se vê com pouco tempo: a derrocada das instituições e um povo analfabeto e miserável, mantido, calculadamente, há séculos no mesmo lugar, sempre manipulado por quem está no poder, que usa de fala melíflua, mas se trai a cada gota de veneno que deixa escapar. Não é possível mais conviver num Estado assim. O mundo moderno nos trouxe as ferramentas para mostrar que a relativização política ou judicial é perniciosa, porque atende interesses espúrios.
Por outro lado, é cada vez mais impressionante como o uso do discurso da ciência acompanha essa relativização obscena. A ciência só é invocada se ela se ajustar ao pensamento oblíquo que interessa a quem a ela recorre. Os sofismas são jogados na cara de todos. Insustentáveis como todo sofisma, mentirosos como todo sofisma. Mas jamais serão chamados de fake news, porque o nome bonito que denuncia o colonizado – que não quer ser colonizado – só deve ser associado ao inimigo das ideias propagadas, por mais canhestras que elas pareçam. Do inimigo, então, deve-se dizer que ele tem ódio, por ele não concordar com a deturpação da verdade. Mais: deve-se dizer que ele é fascista. O que chamo de ideias canhestras, por deturpadas, é a confusão, deliberada, entre democracia e ditadura, trocando-se uma pela outra, quando for da conveniência, pois o grande líder já anunciou, e ninguém pode contrariá-lo, que não só a democracia é relativa, mas também todos os livros de economia estão ultrapassados.
Isto também nos ensina: em geral, aqueles que se apegam apenas às palavras e não às ações, sempre se dirão democratas e antifascistas, mesmo que não saibam exatamente o que significam estas palavras. As suas ações, contudo, revelam claramente o jogo sofístico, nos elogios a ditadores e a princípios nada democráticos como o cerceamento da liberdade de expressão ou leis que punem, com prisão, quem discriminar político, como a que se encontra em tramitação no Congresso. Entenda-se por discriminar, falar verdades sobre as falcatruas dos inocentes representantes do povo... silenciado.
O interessante é que, diante dos sofismas que têm sido veiculados recentemente, Górgias, destruído por Sócrates, no diálogo platônico que leva o seu nome, deve estar exultante, chacoalhando seus ossos na sepultura. Se a lógica rasa demonstra a platitude das ideias, também revela a malícia de uma pretensa lei de causa e efeito, que faria Newton morrer de inveja, entre eleições e democracia. O sofisma e baixa retórica com aparência de justiça e de inteligência, é, no entanto, um cálculo para enganar os cérebros devorados pela doutrinação e os olhos cegados pela idolatria política. Típico de um país de analfabetos, como deveras somos. Muitos deles afogados em diplomas e títulos...
Fiquemos ainda com o Górgias. Sócrates começa a desconstruir o saber que Górgias diz ter sobre retórica, com duas intervenções bem firmes. Na primeira, ele diz que é raro que dois adversários comecem a definir o assunto de um debate e depois se separe, uma vez estando ambos esclarecidos e, reciprocamente, instruídos sobre o assunto. O mais comum é que, havendo o desacordo, um dos dois ache o outro estar enganado ou não falar com clareza, e, irritando-se, acusam-se de ódio e de má-fé, tornando-se o debate antes uma disputa que o exame de um problema (457d).
Na segunda intervenção, Sócrates desvenda o teor da ciência que Górgias diz possuir: a retórica não tem necessidade de conhecer a realidade das coisas; é-lhe suficiente um certo exercício de persuasão,
O governante jamais é soberano, ele não é senão um empregado do verdadeiro soberano, o povo que o elegeu. E ele, o governante, deve se submeter às críticas, usando-as como lição para melhorar-se, não para vingar-se ou oprimir, perseguindo os que dele discordam.por ela inventado, para que, quem a usa, apareça diante dos ignorantes, como mais sábios do que os sábios (459bc).
Colocando a retórica e a sofística, como parte do mesmo empirismo, que tem como finalidade a adulação (463b), Sócrates descaracteriza ambas como técnica, por não terem a oferecer as coisas que oferecem (465a). Como a Política é a técnica que diz respeito à alma, por se dividir em legislação, a sua ginástica, e em justiça, a sua medicina (464b), Sócrates define a retórica como uma falsa visão de uma parte da Política, exatamente aquela que traz o prejuízo ao bem-comum por causa das máscaras de que se utiliza (463d).
Observamos, portanto, não só a atualidade do pensamento platônico, mas como ela nos atinge diretamente, quando submetidos às mentiras convenientes do poder. Em outras palavras, não há como relativizar a democracia. Ou ela é democracia ou não é democracia. Não existe um sentido de democracia para cada um de nós. Existe cada um de nós para uma única democracia, com todos empenhando a sua responsabilidade na construção de um Estado que vise ao bem-comum social; que se baseie na justiça e no respeito às diferenças, mesmo que isto traga um prejuízo pessoal de imediato, mas trazendo o benefício para todos a médio e longo prazo.
O governante jamais é soberano, ele não é senão um empregado do verdadeiro soberano, o povo que o elegeu. E ele, o governante, deve se submeter às críticas, usando-as como lição para melhorar-se, não para vingar-se ou oprimir, perseguindo os que dele discordam. A verdade, como diz Platão, jamais se refuta (473b).
A retórica só terá utilidade se for para deixar à mostra, na claridade, as falhas e os defeitos, nada encobrindo com relação aos governantes, conforme diz Platão, de modo que o culpado possa expiar as suas culpas pelo sofrimento, e assim proporcionar a justiça (480c). Se não for desse modo, não passará de discurso vazio, para enganar os ignorantes que se têm por sábios.
A maior astúcia do mal é vestir a máscara do bem.