O título do livro do meu confrade Eitel Santiago, que ora apresento a Vossas Senhorias, Impressões esparsas , deve ser entendido com a ...

As artes como linha de frente da arenga

eitel santiago livro impressoes esparsas
O título do livro do meu confrade Eitel Santiago, que ora apresento a Vossas Senhorias, Impressões esparsas, deve ser entendido com a literalidade que lhe é própria, diferente daquela que o vulgo empresta aos termos. Seus textos não são tão impressões e não são tão esparsas, como pretende, na sua modéstia, o seu autor, ou como poderia julgar, erroneamente, quem se ativesse apenas ao título. Entendamos o termo esparsos com o seu sentido primeiro de coisas semeadas, que advém do verbo spargo, ĕre,
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mais significativo do que apenas o de coisas jogadas aqui e acolá.

Diria que se trata de uma miscelânea. Também não se tome o termo na sua segunda acepção, de uma mistura pura e simples de coisas diferentes. É miscelânea, no seu primeiro significado, de textos literários variados, ligados, porém, por um fio condutor, configurando uma unidade, como o definiu Tertuliano. Uma unidade que expressa, no caso em questão, o amor às formas artísticas e, dentre elas, com mais especificidade, o amor à literatura. Por outro lado, as impressões também não são meros devaneios, são o que resulta do ato de imprimir, para ficar, de forma indelével, no nosso espírito.

Esta discussão inicial se justifica pelo fato de que costumamos defender que tudo num livro, do título às ilustrações, é texto, parte indissociável do seu conteúdo. Capa é texto, portanto. Não é à toa que Eitel Santiago escolheu como ilustração um quadro de sua irmã, Bella Santiago, intitulado O Escriba, pertencente ao acervo da Academia Paraibana de Letras. A escolha se deu, tenho certeza, por também ser uma tela de sua irmã. A motivação inconsciente, associando-se à razão, realiza, com perfeição, a adequação do citado quadro ao tema, por aquilo que ele representa: um profissional no ato da escritura.

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O EscribaBella Santiago
Para alguém que olha o quadro de Bella Santiago, sem a atenção devida, sem lhe enxergar a profundidade, o que assoma é a desordem. Ao analisarmos, com a paciência e a minudência, que a tela merece, veremos o escriba em plena atividade, concentrado em seu trabalho, com o lápis correndo sobre a folha aberta, feições graves de quem está imerso no que sabe fazer, numa atitude de reflexão sobre o que pratica, em meio às muitas tentativas de realização de um trabalho incessante, como a escritura, tendo, ao redor de si, algumas folhas que foram produzidas, enquanto continua o trabalho incansável da escrita, que, para seu aperfeiçoamento, exige muito de quem o faz. O espargir do que se escreve, então, é como o espargir do que se semeia: uma busca incessante pelos frutos que hão de vir. É daí, desse sentido, de semeadura frutificante, que gostaríamos de ressaltar a substância do livro de Eitel Santiago.

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Eitel Santiago
Consciente da lida incansável de quem escreve, ele sabe que nem tudo o que se produz será aproveitado, mas de tudo o que se cria tira-se o seu proveito, o que nos enseja a dupla citação do poeta Carlos Drummond de Andrade, nos poemas “O Lutador” e “Resíduo”, respectivamente, que, de certa forma, ajudam a entender o que é a incansável tarefa do escrever:

“Lutar com palavras é a luta mais vã. Entanto lutamos, mal rompe a manhã.”
“Se de tudo fica um pouco, mas por que não ficaria um pouco de mim?”

Continuando a minha reflexão inicial, faço aqui uma sutil diferença entre escritor e aquele que escreve. É a mesma reflexão que considero essencial, entre o semeador e aquele que semeia. Conforme se encontra na “Parábola do Semeador”, no grego dos Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas, ou no latim da Vulgata de São Jerônimo, o que se emprega para o agente do semear é o σπείρων e o qui seminat, cuja tradução é “aquele que semeia”. Assim como o semeador, o escritor diz apenas de uma profissão em que não se vê necessariamente a práxis, a ação de praticar algo. Do mesmo modo, o que semeia é igual a o que escreve, sempre incansável na sua labuta, procurando, um, a melhor das terras; o outro, a melhor das formas. Nos dois casos, vemos uma busca de transformação em suas ações constantes,
não uma repetição de fórmulas, que se, em um leva ao fracasso da semeadura, no outro, inviabiliza a escritura, sem que qualquer transformação que possa delas advir. Complete-se a minha reflexão trazendo a informação que os verbos σπείρω, em grego, e spargo, em latim, aqui já citado, apresentam uma proximidade etimológica.

Eitel Santiago revela-se excelente resenhista, e o demonstra na primeira parte de seu livro – Crônicas, resenhas e registros. A sua resenha não é puramente informativa, mas a resenha crítica, aliando leitura, memória e saber jurídico, que o caracteriza e que integra a sua formação. Veja-se, por exemplo, a rápida incursão nos meandros do Direito, quando Eitel se refere às consequências nefastas do amor de D. José por Carmen, na famosa ópera de Bizet (p. 46-50). Desse modo, Eitel Santiago vai compondo as suas ideias. Mesmo o leitor que não o conhece é capaz de, ao término de seu livro, traçar um perfil de nosso autor.

Sem o aparato teórico que caracteriza o crítico literário, Eitel possui a intuição do leitor, buscando as minúcias e o não-dito dos textos, com que tece o seu comentário crítico. Consciente do que faz, Eitel escusa-se “por não dominar a teoria da literatura” (p. 82). Assim também age ao se referir às classificações das escolas literárias, sentindo que elas são necessárias “e se justificam para facilitar os estudos da evolução da Literatura” (p. 53).
Esta compreensão, que muitos não têm, nos dá a medida exata do que significa classificar. Qualquer que seja a classificação proposta, ela é o sentido primeiro, o que aproxima os semelhantes, separando-os em classes. Cabe, contudo, ao leitor avisado ter sempre em mente o cuidado de saber que as classificações não são definitivas e que as linhas que as separam são tênues, como Eitel deixa nas entrelinhas.

Orientando os seus textos por esse viés, destaco, em Impressões esparsas, o texto ensaístico “Sentido revolucionário da Semana de Arte de Arte Moderna”, por ocasião do centenário daquele evento importante para as artes no Brasil; “José Fernandes de Andrade: uma trajetória de superação”, perfil biográfico irretocável deste nosso incansável mecenas paraibano; “O advogado Rodrigues de Carvalho” em que temos a satisfação de ver outro perfil biográfico, com Eitel dando merecido destaque à verve poética do homenageado. Não fica para trás o elogio fúnebre “Discurso em reverência a Sitônio Pinto”, em sessão na Academia Paraibana de Letras, exaltando as qualidades literárias do falecido confrade.

Ensaísta, jurista, cronista, poeta repentista bissexto, amante das artes e da literatura, em todas as suas formas, principalmente leitor, Eitel é o humanista, no sentido da palavra que leva ao renascimento cultural, que se preocupa com a possibilidade de acesso de todas as pessoas à cultura. Idealista – por que não? –, ao ver nas artes a expressão do Belo e do Ético, estando na boa companhia de Jorge Luís Borges, que acreditava na literatura como uma arte capaz de nos proporcionar alegria. Eitel é, ainda mais, orador, tribuno e, no bom sentido do termo para a Grécia Clássica, homem político,
que não se recusa à arenga. E aqui faço um parêntesis. Embora com uma origem etimológica controversa, o termo arenga pode ser associado ao verbo grego agoreúw (ἀγορεύω). De início, arengar significa a pregação pública, o ato de discursar e de falar em público. É este exatamente o sentido do verbo grego, derivado de ágora (ἀγορά), a praça, com o verbo designando a ação de se falar em público ou em assembleia. Um dos sentidos possíveis, de origem germânica, apontado pelo grande Antenor Nascentes é o de círculo, vindo daí a ideia de assembleia. Independente da origem etimológica, fico feliz em ver que Eitel Santiago, em seu livro Impressões esparsas, utilizou o termo ressuscitando o seu significado original.

E o faz num momento em que toda discordância é chamada imediatamente de “discurso de ódio”, revelando o mais fácil e mais vil dos argumentos, o argumento ad hominem, encalacrado na ignorância atávica de um país em que a esmola, como instrumento de dominação, funciona em lugar da escola, instrumento de libertação; momento em que vivemos o absurdo da paulatina transformação da verdade em mentiras, com o único fito de calar as vozes discordantes. Nestes tempos difíceis, em que mais do que nunca, a arenga deve ocupar, como é de direito, desde a ágora grega, o seu lugar na praça pública, Eitel Santiago chama para a realização, não para a fatuidade do fácil discurso enganador. Por isto mesmo é arenga, a discussão, o debate frutífero que desmascara a retórica fácil, enganadora e adulatória, na compreensão do que é fundamental para a mudança de nossa sociedade (p. 72):

“Somente a educação do povo pode nos libertar do atraso e da violência. A construção de uma sociedade justa e fraterna passa pelo fortalecimento de ações semelhantes. Despertar o interesse, em nossas crianças e adolescentes, pelas artes e letras é louvável. Leva-nos a pensar que a vida, em certos momentos, confunde-se com os sonhos, como bem assinalou Cecília Meirelles, em seu poema “SONHEI UM SONHO”: ‘Sonhei um sonho; e lembrei-me do sonho; e esqueci-me do sonho; e sonhei que procurava, em sonho, aquele sonho; e pergunto se a vida não é um sonho que procurava em sonho’”.
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Millet, 1872
Não se escondendo, não fugindo ao chamado do debate, Eitel imprime e esparge a necessidade da arenga, primeiro passo para a realização do sonho da vida, procurado em nossos mais profundos sonhos, tendo a arte e a literatura como linhas de frente de um embate que precisa ser travado sem tréguas.

Para finalizar, tendo Eitel citado, no rápido prefácio que fez para Impressões esparsas, “Conteúdo do Livro”, um trecho do Quixote, livro que lhe é caro, ouso responder-lhe, aproveitando o mote heptassilábico – “minhas pompas são as armas/meu descanso o pelejar” –, que se encontra na segunda parte de D. Quixote, Capítulo LXIV (ellas eran sus arreos, y su descanso el pelear), com a certeza de que ali se encontra a essência do combate que devemos levar a cabo, com as armas do debate e da cultura:

Mote Minhas pompas são as armas, Meu descanso o pelejar. Nesta vida de labuta, Nunca enjeitei embate, Pra vencer, não pra empate, A vitória é de quem luta. Desse pomo só desfruta O que muito se empenhar, Não há como descansar, Todos temos os nossos carmas, Minhas pompas são as armas, Meu descanso o pelejar.

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