Quem escreve – ainda que um simples bilhete – tenta afastar-se do falar cotidiano, tenta usar uma linguagem diferente da que está habituado a usar. E escrever poemas é distanciar-se ainda mais da fala do dia a dia. É trabalhar a língua, é subverter a sintaxe, é falar à alma. Por isso, as primeiras manifestações literárias de um povo costumam ser em versos. Quando não havia escrita, as histórias se contavam em poemas, porque as rimas ajudavam no processo de memorização e facilitavam a transmissão da cultura, de geração a geração. A perpetuação da ficção da comunidade ágrafa e da sua cultura – essa terá sido a primeira função da poesia.
Penso nisso agora, ao reler o artigo que (pasmem!), um poeta escreveu no caderno Mais!, de 26-01-97, na Folha de São Paulo. Refiro-me ao artigo “A necessidade atual da inútil poesia”, de Régis Bonvicino, em que ele diz, entre outras coisas:
“A poesia não tem, propriamente, uma função. Ela é inútil (...). Sua inutilidade atravessa regimes políticos diversos, bem como Economias (...). Talvez a poesia tenha uma função no quadro das artes e da cultura: a de ser manifestação inútil (“Teoria do inutensílio”, de Paulo Leminski), sem presença no dia a dia das pessoas, o que lhe confere liberdade e arbitrariedade. (...). A poesia está – hoje – dissociada da evolução das línguas. Não tem, assim, nem mesmo sua antiga função de estimular uma língua (sic!) – papel desempenhado pela televisão, pelo rádio, pelos jornais e um pouco pelo cinema. Há um esvaziamento da poesia neste final de século e de milênio.”
E por aí vai. A citação é longa, mas vale para mostrar que o primeiro grande equívoco do articulista foi confundir a poesia (o conteúdo) com o poema (a forma). A poesia existe em toda parte, em todo lugar, em todos os momentos. Compete ao poeta captá-la e transpô-la para o livro, ou para o filme, ou para a televisão, ou para a música, ou para a dança, ou para o rádio... O poeta é o que vê poesia onde o comum dos mortais não vê nada, além do trivial. Baudelaire viu-a no escatológico; Augusto dos Anjos, num escarro de sangue; Castro Alves, na ânsia de liberdade e de igualdade entre os homens. Gérard de Nerval viu na borboleta um traço de união entre a flor e o passarinho, e a borboleta ficou mais bonita para quem passou a ver nela isso também. Como seria a História do Brasil sem os poemas de Castro Alves, contra a escravidão? Como seria a História do Mundo sem os versos da “Chanson d’automne”, de Paul Verlaine, que serviram de código para informar a resistência sobre a invasão aliada, na II Guerra Mundial? Ou sem os acordes iniciais da Quinta Sinfonia de Beethoven, que, casualmente, reproduzem a letra V de Vitória, segundo o código Morse (três notas breves e uma longa) e que, por isso, também serviram de aviso aos aliados?
O poeta vê o que nós não vemos, e revela-nos a beleza que existe no mundo que nos cerca, tornando-o melhor e mais habitável. Essa beleza escondida é a poesia revelada. Poesia é a visão bonita que Orestes Barbosa, na canção Chão de estrelas, nos transmite da lua que fura o telhado de zinco do barraco pobre e salpica de estrelas o chão que a morena pisa distraidamente. Poesia é a beleza que Vittorio de Sicca revela na cena final do seu filme Ladrões de bicicleta, ao mostrar o rosto endurecido da criança, subitamente transformada em adulto, a conduzir pela mão o pai desesperado e envergonhado por ter sido flagrado pela multidão quando roubava uma bicicleta para trabalhar. Poesia é o drama, mostrado pela televisão, em novembro de 1985, da menininha colombiana Omaira Sanchez, de apenas 13 anos, vítima da erupção do Nevado del Ruiz, ao morrer de hipotermia, soterrada num buraco cheio de lama e de pedras, acenando com esperança de vida para as câmeras que a focalizavam para o mundo inteiro.
A poesia é necessária, porque nos revela, como as lentes dos óculos de quem tem problemas visuais, um mundo de maravilhas que não saberíamos ver sem ela. Além disso, escrever poemas, vale dizer, tentar revelar a poesia do mundo aos outros, é uma forma também de terapia ocupacional, hoje adotada por psicólogos, por psiquiatras e por todos os que se dedicam aos ortopedismos da mente humana. E, posto que não tivesse função pragmática, a poesia seria necessária, porque não haveria sentido nenhum numa vida que se fechasse ao Belo.
Que me desculpe o pobre poeta articulista Régis Bonvicino, mas a poesia é tão importante e necessária que os homens se matam, a si e aos outros, quando não conseguem vê-la ou descobri-la. Como eu.