Ela se chamava Isabel da Nóbrega (pseudônimo de Maria Isabel Guerra Bastos Gonçalves), escritora portuguesa, autora de respeitada obra e falecida em 2021, aos 96 anos, no Estoril. Ele, o tal prêmio Nobel, foi José Saramago, companheiro dela de 1970 a 1986 e falecido em 2010. A partir de quando se separaram, em 1986, literariamente ele foi cada vez mais em frente (e para o alto), enquanto ela, pode-se dizer, estagnou ou, digamos, permaneceu onde estava, com seu nome praticamente restrito ao seu país. Ele foi ao mundo e se apaixonou por outra, a jovem jornalista espanhola Pilar, a quem legou o título de “viúva” e os bônus correspondentes. Eu diria que legou-lhe até mais, dado o sumiço imposto a Isabel desde a separação: seu presente, sua posteridade e até,
em certa medida, seu passado, dada a hegemonia assumida na vida do escritor pelo novo (e derradeiro) amor.
Essa história, sabemos, não tem nada de original. Vemos acontecer todos os dias com próximos e com distantes. O amor mais recente anula o(s) amor(es) passado(s), que é quase como se não tivesse(m) existido. A vida sentimental e erótica do(a) apaixonado(a) parece começar do zero, mesmo quando muitos quilômetros já foram percorridos, valendo apenas aquele ou aquela que acabou de chegar. É a força da novidade impondo-se aos velhos hábitos, ao já sabido e experimentado. E aí ele e ela repetem o chavão: “Finalmente encontrei o amor de minha vida”. Amor eterno que não raro dura só seis meses. É hilário e ao mesmo tempo triste.
Com Saramago, imagino, a substituição do amor por Isabel pelo amor por Pilar não se revestiu da banalidade comumente exibida por atores e atrizes da televisão, as “celebridades” de quinze minutos de fama, exemplos contemporâneos da arguta profecia de Andy Warhol. O amor acaba (nem sempre, óbvio), já dizia o poeta e cronista Paulo Mendes Campos, e, quando isso acontece, o jeito é seguir em frente, se for possível. Não conheço as razões da separação de José e Isabel. Viveram juntos dezesseis anos, tempo bastante para consolidar para sempre uma relação e também para mostrar o equívoco da mesma.
Ao lado de Isabel, Saramago publicou os seguintes livros: Manual de pintura e caligrafia, de 1977; Levantado do chão, de 1980; Memorial do Convento, de 1982; O ano da morte de Ricardo Reis, de 1984; e A jangada de pedra, de 1986. Cinco livros que revelaram o autor para Portugal e o mundo, principalmente Memorial do Convento, início da fama mundial do futuro prêmio Nobel de literatura. É de se supor que a companhia de Isabel tenha ajudado de alguma forma essa notável produção literária nascida sob o teto comum. E a prova disso é que o Memorial do Convento foi a ela dedicado com as seguintes palavras: “À Isabel, porque nada perde ou repete, porque tudo cria e renova”. Dedicatória para mim enigmática, talvez anunciadora da separação que viria quatro anos depois.
Para ele, o prêmio Camões veio em 1995 e o Nobel em 1998. Isabel já estava distante há vários anos, praticamente apagada da vida de José, não fosse a citada dedicatória do Memorial e a inapagável presença dela em sua biografia, já que dezesseis anos não são dezesseis dias, impossíveis, portanto, de serem cancelados.
Os indícios que colhi aqui e acolá são de que foi de Saramago a iniciativa da separação. Ele que teria abandonado Isabel, se abandonado é a palavra certa para o ocorrido. Não sei se ele saiu de casa amigavelmente ou não, tendo avisado ou não. As separações não são simples. Entretanto, reconheço o direito de ele ir embora, espero que sem grandes mágoas, já que as pequenas são incontornáveis, talvez a causa mesma de sua partida. Se fosse o contrário, Isabel também teria igual prerrogativa, é claro.
Antes de se juntarem Isabel e José, ela viveu com o escritor e crítico João Gaspar Simões e ele foi casado com Ilda Reis, com quem teve sua única filha, de nome Violante, ambas, parece-me, de escasso comparecimento na biografia do Nobel, o que pode talvez confirmar a tese de que Saramago, a partir de Pilar, fez questão de silenciar ou de pouco falar sobre seus amores passados. Amores, é evidente, que, ao seu respectivo tempo, foram importantes para ele e sua vida, por mais que ele quisesse eventualmente negar.
Isabel, morta em 2021, sobreviveu 11 anos a José. Acompanhou de longe e, ao que parece, em silêncio sua consagração literária e sua decadência física. Que terá pensado sobre tudo isso e, principalmente, sobre o que havia se passado entre 1970 e 1986? Pelo que sei (e é pouco), recolheu-se à pequena cidade litorânea, próxima a Lisboa, para viver a velhice, provavelmente povoada de recordações de sua rica existência artística e literária, para além de Saramago. Para si, supõe-se, não teria reivindicado nada relativamente aos anos vividos com o premiado escritor. Nenhuma participação, nenhuma influência, nenhum apoio. Nada. E esse nada, no fim, é que diz muito sobre ela, dignificando-a.
Os futuros biógrafos de Saramago provavelmente saberão dar a Isabel o realce devido, positiva ou negativamente, não importa. João Marques Lopes, autor de Saramago, Editora Leya, São Paulo, 2010, praticamente passou ao largo dela. Mais recentemente, Miguel Sanches Neto, em O último endereço de Eça de Queiroz, Companhia das Letras, São Paulo, 2022, deu-lhe mais espaço. O importante é que seja dada a ela uma presença real, um lugar que lhe retire definitivamente da condição de fantasma na trajetória gloriosa do Nobel, que, como muitos e muitas, distinguiu exagerada e exclusivamente o derradeiro amor, como se ninguém tivesse havido antes. Isabel da Nóbrega aguarda no túmulo quem lhe faça justiça. Mas não esqueçamos de que ela não precisa ser associada a Saramago para ter a importância própria que conquistou na cultura portuguesa, independentemente daquele que a cancelou.