Era uma visita que eu estava devendo, mais a mim do que a ela, à minha Dama de Ferro. Desta vez a encontrei debilitada sob o peso de noventa trocas de calendários na parede.
Já não podendo andar sem ajuda de outrem ou de algum acessório, ouvindo pouco, mas me abriu aquele sorriso que aprendi a admirar e com a voz trêmula assim que me viu, balbuciou: É você, Guto? Guto em questão, trata-se deste escrevinhador aqui vestido do apodo familiar. Fazia tempo que não me chamavam assim. Claro, que apreciei.
Já não podendo andar sem ajuda de outrem ou de algum acessório, ouvindo pouco, mas me abriu aquele sorriso que aprendi a admirar e com a voz trêmula assim que me viu, balbuciou: É você, Guto? Guto em questão, trata-se deste escrevinhador aqui vestido do apodo familiar. Fazia tempo que não me chamavam assim. Claro, que apreciei.
E quem seria ela? Ah, com que carinho e respeito vou tentando nestas linhas quitar um débito de décadas. Trata-se de uma tia por parte de pai, a minha tia Betty. O que a faz digna do título que escolhi para essa crônica é toda uma história de vida.
Antes de contarmos algo acerca dessa mulher que carregou pelas malas da vida a docilidade de um passarinho e a alma guerreira de uma águia protegendo sua ninhada, vamos falar de um sentimento muito adequado ao nosso contexto, a gratidão.
Este é um sentimento que devemos cultivar com a mesma delicadeza que um jardineiro cuida de sua avenca melindrosa. É o que estou tentando fazer.
Nascida lá nos altos da Mantiqueira, começo da década de 1930, desde pequenina alimentou o sonho de professora e naqueles verdes anos trocou a boneca pelo lápis e o caderno. O curso primário foi por lá mesmo, nas montanhas, sob a batuta de Dona Ofélia, educadora rígida que faz parte da história da cidade. Em Guaratinguetá cursou as quatro séries do ginásio e as duas primeiras da etapa seguinte. Mas, então, Campos do Jordão, já ganhara seu Curso Normal e Betty Pereira da Matta se fez presente na lista dos formandos de 1953.
Naqueles anos, antes de “escolher cadeira”, localidade onde iam se instalar definitivamente para exercer o magistério, as normalistas tinham que passar um tempo lecionando nessas brenhas de mundo, numa espécie de estágio preparatório. Pelo menos era assim no estado de São Paulo. Minha tia se embrenhou lá pelas bandas do Baú, vilarejo entre São Bento do Sapucaí e Campos do Jordão. Naqueles tempos, região de matas cerradas de araucárias e pinho bravo. Ainda inóspita onde adejavam as temerosas onças comedoras de gente. Ali, a professorinha, loira, de olhos claros, na solidão do anoitecer, jogava truco com a caboclada. Quem não conhece, saiba que truco é jogo de blefes.
Nestas contendas quem levar uma trucada nas orelhas, sobram três alternativas: Ou se pede para o adversário mostrar as cartas, ou foge, ou ainda dobra a aposta gritando um sonoro “seis!” nas ventas do adversário. Numa dessas rodadas um “inimigo” a desafiou em alto e bom tom, exibindo macheza e valentia: “Truco professora!”. Tia Betty não vacilou e de pronto desafiou o abusado dobrando a aposta: “Seis, cagão!” Foi uma risada geral diante ousadia daquela mocinha. A professorinha era uma danada e jogava truco tão bem como ensinava. Quando foi embora para escolher cadeira deixou amigos e saudades naquele canto escondido do mundo. Daí para frente uma carreira prodigiosa lecionando e dirigindo escolas. Casou, trouxe para o mundo Virgínia e Marcos. Ficou viúva precocemente e como uma leoa enfrentou esses fantasmas que a vida coloca diante nós. Ela os venceu, um a um. Uma guerreira essa minha Dama de Ferro.
Já é hora de citar de onde vem essa minha tão decantada gratidão. Eu terminara o curso primário no final de 1961. A próxima etapa era o ginásio e frequentá-lo só depois de aprovado no temível “Exame de Admissão”. A prova seria no início de fevereiro do ano seguinte. Tia Betty me recolheu na casa de meus avós e me submeteu a uma maratona de três expedientes do dia 2 janeiro até a véspera dos exames.
Pela manhã, com ela no Ginásio Estadual, pois era ali que ela ministrava aulas para esse concurso, À tarde na casa dos avós onde havia um “rancho” , sob o qual ela aplicava aulas particulares para “turma do Admissão”. À noite era a hora de “tomar o ponto”; ou seja, aferir o que se havia aprendido nos dois turnos anteriores. Isso de segunda a sábado. Domingo me era permitido ir com Toninho e Kurtis, amigos da família, até a chácara do Fernando Pinto, lá em Santa Cruz, me esbaldar na piscina que lá havia.
Até aí nada de anormal, mas dos quatro filhos de meu pai, eu o primogênito, era o mais desengonçado, era desatento, tirava notas baixas, creio que até havia um consenso que esse aí (no caso, eu) não iria dar para nada na vida. Tia Betty resolveu quebrar esse paradigma. “Vou mostrar que o Guto não é nada do que estão falando”. Começou aquela maratona até a véspera da prova. Fiz a prova. Nota: 8,6, o segundo colocado daquele concurso.
Agora, meus leitores e minhas leitoras, é ou não é para se ter gratidão?