Em O último dia de um condenado ( Le dernier Jour d'un condamné, Oeuvres completes, Romans I , Paris, Robert Laffont, 2002), um do...

'... que son carrosse rencontrât ta charrete''

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Em O último dia de um condenado (Le dernier Jour d'un condamné, Oeuvres completes, Romans I, Paris, Robert Laffont, 2002), um dos escritos ficcionais de Victor Hugo contra a pena de morte (1829/1832), o outro é Claude Gueux (1834), encontramos, no curto Capítulo XL, que eu chamo O Rei e o Réu (p. 474), a frase que dá título a este artigo. A sua tradução seria — “que a sua carroça encontrasse a tua charrete”.

A língua nos prega muitas peças, diferentemente do senso comum, “carroça” não é “carroça”, nem “charrete” é “charrete”. A língua francesa define “carrosse” como “carro de luxo, de quatro rodas,
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Odeon, S. XIX
coberto”; já a definição de “charrete” é “carro de duas rodas, para transporte dos condenados à guilhotina ou carro puxado a bois”.

Em primeiro lugar, diremos que para nós, o senso comum eleva a charrete e diminui a carroça. Ainda que esta também tenha, em língua portuguesa, o sentido de carro de luxo, fixou-se nela o sentido depreciativo de “carro velho”. Em segundo lugar, diremos que a carroça, no texto hugoano, refere-se ao transporte do rei, mais especificamente, o rei Charles X, rei de França (1824-1830). Por fim, para dar início à discussão que nos move, há um trocadilho genial de Hugo, pouco perceptível, envolvendo “carroça” e “charrete”, aparentemente diferentes, por marcarem a condição social, mas semelhantes no uso que a simbologia hugoana lhes atribui, sobretudo, com os dois significados dados pelo dicionário e assumidos implicitamente pelo escritor, de transporte de condenados à guilhotina e de carro puxado a bois.

O contexto que envolve a frase situa-se nos últimos dias de um condenado à morte, personagem não denominado, com o propósito de, através de um homem, sem rosto e sem nome, fazer aumentar a angústia do leitor, que tende a se identificar com ele. Não sendo especificamente ninguém, ele é todos. Nesses últimos momentos, a aflição do condenado torna-se cada vez maior, na esperança de alcançar a graça, com o perdão do rei Charles X.
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J.W. Derby, 1786
De modo a marcar a diferença de classe entre dois homens absolutamente iguais na sua constituição biológica, o condenado faz a seguinte reflexão, como se uma voz lhe falasse dentro de sua cabeça (em tradução nossa):

“⏤ Há nesta mesma cidade, nesta mesma hora, e não muito longe daqui, em um outro palácio [o condenado se encontra no Palácio da Justiça], um homem que também tem guardas em todas as suas portas, um homem único com tu entre o povo, com a diferença de que ele está tão alto quanto tu estás baixo. Sua vida inteira, minuto a minuto, não é senão glória, grandeza, delícias, inebriamento. Tudo, em torno dele, é amor, respeito, veneração. As vozes mais altas tornam-se baixas, em lhe falando, e as frontes mais altivas se dobram. Sob os seus olhos, não há senão seda e ouro. A esta hora, ele preside algum conselho de ministros onde todos são de sua opinião, ou bem sonha com a caça de amanhã, com o baile desta noite, certo de que a festa acontecerá na hora, e deixando aos outros o trabalho de seus prazeres. E, vê! Este homem é de carne e osso como tu! – e para que, neste mesmo instante, o cadafalso desabasse, para tudo te fosse devolvido, vida, liberdade, fortuna, família, seria suficiente que ele escrevesse com esta pluma as sete letras de seu nome embaixo de um pedaço de papel, ou mesmo que sua carroça encontrasse tua charrete!”

Sem ter para onde e para quem apelar, o condenado, no seu íntimo, apela para o destino. Era de praxe um condenado ser agraciado com o perdão se coincidisse que o seu transporte, em direção ao cadafalso, encontrasse o do rei. Percebe-se que o apelo ao destino se impõe com a utilização do número sete, um número cabalístico, na menção ao nome do rei, com sete letras – Charles – e no trocadilho entre os termos “carroça” e “charrete”: a constelação da Grande Ursa tem sete estrelas visíveis, chamadas de “Setentrião”, nome que, posteriormente, por sua posição astronômica, passou a designar a posição Norte.
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As sete estrelas do norte, em pintura de Van Gogh, 1888
O termo setentrião origina-se do latim “septem triones”, literalmente, “sete bois de carga”, tendo em vista que, a olho nu, conseguimos ver as sete estrelas dessa constelação, chamada popularmente de “carroça” (o francês a chama “charriot”).

Entendamos um pouco o uso literário da Grande Ursa. Nas Metamorfoses, de Ovídio, Livro II (versos 401-530), narram-se os mitos de Calisto e de Arcas. Calisto, sacerdotisa de Diana, engravida de Júpiter e dá à luz o filho Arcas. Por vingança, Juno a transforma em ursa, de modo a apagar a sua beleza – Calisto, em grego, significa “a mais bela” –. Arcas, por sua vez, cresce e se transforma em caçador, vendo-se, em certa ocasião, na iminência de matar a mãe, ignorando esta condição, agora transformada em ursa. Júpiter intervém e transforma ambos em estrelas vizinhas: ela compõe a Ursa Maior; ele compõe a constelação do Boieiro, com o nome de Arcturo, “o guardião da Ursa”, o significado de seu nome em grego. Por exigência de Juno, o filho deve impedir a mãe de se banhar nas águas de Oceano e de Téthis.

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As constelações da Ursa Maior (Esq) e do Boieiro
Ovídio nas Metamorfoses, um dos mais importantes poemas do mundo latino, constrói um texto cuja caraterística não se resume a mostrar as transformações que ocorrem, por desatino ou por merecimento, nos seus personagens, mas sobretudo, um texto de aitia (αἰτία), de revelação das causas, das origens, do ponto de vista do mito, a respeito de muitas coisas que existem no nosso mundo.

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Hefesto construindo o escudo de Aquiles
As primeiras referências à Grande Ursa ou ao Setentrião, no mundo ocidental, se encontram em Homero, na Ilíada e na Odisseia. Na Ilíada, vamos encontrá-la no Canto XVIII (versos 478-608), no maravilho escudo de Aquiles, fabricado por Hefestos. Trata-se de uma representação do céu, situando-a no firmamento como a “carroça” (Ἄμαξαν), girando sobre ela própria, observando Órion e nunca se banhando no mar. Ainda que possamos ver na observação de Órion um direcionamento da Ursa, este não é o objetivo de o Deus Faber tê-la colocado ali. Hefestos apenas a coloca no escudo, sem se referir à causa que a criou, apenas como a representação do cosmos, que inclui a Terra (tradução nossa):

Nele fabricou a terra, o céu, o mar, O sol infatigável e a lua cheia, E todas as constelações, as com que o céu se coroa, As Plêiades, as Híades, a força de Órion, A Ursa, que chamam com o nome de Carroça, Que gira sobre si mesma e observa Órion, E é a única privada dos banhos de Oceano.

Na Odisseia, a referência se encontra no Canto V, na partida de Odisseus de Ogígia (versos 269-281), com a Ursa indicando o caminho, para ele retornar a Ítaca, numa navegação orientada pelas estrelas (em tradução nossa):

Alegre com o vento favorável, o divino Odisseus desfraldou as velas. Em seguida, sentado, dirigiu, com o leme em linha reta, com habilidade, e nem o sono caía sobre as suas pálpebras olhando as Plêiades e o Boieiro, que, tarde da noite, se escondem, e a Ursa, a que chamam com o nome de Carro, que gira em torno de si mesma e observa Órion. Só ela está privada dos banhos de Oceano: Esta, pois, ordenou-lhe Calipso, divina entre as deusas, percorrer o mar mantendo-a à esquerda da mão. E por dezessete dias navegou atravessando o mar; e no décimo oitavo dia apareceram as montanhas umbrosas da terra dos Feácios, ali onde se achava muito próximo dele. E a terra semelhava um escudo no mar brumoso.
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E. Goodall, inspirado em J.W.M. Turner
A partir da ordem que lhe dera Calipso de percorrer o mar mantendo a Ursa sempre do lado esquerdo, podemos deduzir a posição em que se encontra Odisseus. Ogígia situa-se no extremo ocidente. Lembremos que a ilha fica no umbigo do mar. O umbigo não é o que está, necessariamente, no meio do corpo, mas o que se encontra próximo da entrada e da saída da vida, daí a metáfora: Ogígia está numa posição próxima da entrada e da saída do mar para o rio Oceano, no caso, o atual Oceano Atlântico, que alimenta o mar que cinge Ogígia, tanto quanto alimenta o mar Jônio, onde se encontra Ítaca (atual Mediterrâneo). Ao manter a Ursa do lado esquerdo e navegar fitando as Plêiades e Órion, que nascem, à noite, no oriente, durante o verão, deduz-se a posição da ilha em que Odisseus se encontra prisioneiro. Por outro lado, nos diz, de modo inconteste, que Ítaca situa-se, com relação a Ogígia, a leste.

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Branche, S.XIX
No romance O último dia de um condenado, Victor Hugo deixa de lado as simbologias de representação do firmamento, da possibilidade de orientação pelas estrelas e das causas da criação das constelações. O que importa é outra simbologia, a do destino. Na angústia das horas que passam trazendo a aproximação do momento da sua execução, o condenado se entrega aos desígnios do destino: a esperança reside ou na dádiva da graça, com o encontro fortuito da carroça e da charrete, ou no peso das sete letras do nome do rei, coincidindo com as sete estrelas da Ursa, a carroça puxada pelos sete bois. Esta simbologia de esperança no destino inclui o escapar da morte, assim como Calisto, em sua feição de ursa, escapa de ser morta pelo filho, pela intervenção de Júpiter. Brilhantemente, e mais sugerindo do que dizendo, Hugo inverte a proposição do mito: no mito, a mãe escapa de ser morta pelo filho; na aflição angustiante do condenado, ele espera escapar de ser morto pela mãe/pátria, com a intervenção do todo-poderoso monarca.

Ao criar uma tensão crescente, pendular entre a morte e o perdão, Hugo, enfim, nos mostra uma característica mais do que humana: quando lhe falta a esperança, o homem apela ao seu destino, julgando encontrá-lo nos mistérios insondáveis das estrelas, onde, quem sabe, talvez Deus se esconda.

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