Agora estamos num ajuntamento esparso de pessoas, ao ar livre. Como sempre há muitas crianças, mocinhas adolescentes, como sempre andrajosamente vestidas. Vêm-se jovens mães com bebês. Em menor proporção, adultos de idade variada. A câmera sai colhendo imagens e depoimentos curtos. Um homem por volta dos 25, branco, tem um cabelo fino e esbranquiçado de eslavo, está sem a camisa e exaltado:
– Porque não podemos comer carne de cachorro?! Ou de gato? Nossos antepassados comiam. Porque não podemos? Não temos emprego, não nos dão emprego, e nós temos filhos, e o que vamos dizer a eles se não há comida? – Transmite muita indignação e revolta. Fala socando o ar. Corte.
Agora vemos um rapaz com um acordeom, perfilado no centro de um grupo heterogêneo de mulheres e crianças. Estão como posando para uma fotografia. Em seguida ele começa a tocar e a cantar no que imediatamente algumas mulheres passam a se remexer e bater palmas, marcando o compasso. Outras repetem com ele partes conhecidas da letra da canção, que parece ser do agrado de todos. Uma delas adianta-se à frente e inicia uma dança que é como uma caricatura cigana, fazendo meneios com os braços erguidos e com as mãos, numa pálida lembrança da dança do ventre, ou do flamenco. Entre elas, uma de idade madura, aparentando um envelhecimento talvez precoce, destaca-se, no entanto, por uma alegria e jovialidade que supera as das outras. Corte.
O do cabelo com um bico para frente está sentado sobre um banco de madeira, com crianças por perto. Ele diz, apontando para um ponto além do visor da câmera :
– Vocês podem ver o que costumamos comer por aqui. Ela está fazendo. Há uns 10 metros dali há uma mesa fixa no chão batido, uma tabica na frente de uma das casas, e onde uma mulher está fazendo lingüiças. Ela limpa uma tripa enquanto outra, já pronta, descansa estendida sobre as bordas de um balde de plástico. Com uma caneca, ela retira água do balde e a introduz para dentro da tripa arregaçada por um pau. O repórter se aproxima, enquanto ouvimos uma voz indefinida e legendada:
– Nós comemos isso aí.
O repórter aparece de costas, perguntando:
– De que é feita essa lingüiça?
– De porco. – A mulher diz, sorridente.
Há vários recipientes, cilíndricos sobre a mesa. Num deles, um pequeno almofariz de madeira, o repórter põe o dedo indicador e o retira com uma amostra aderida na ponta. “O que é isso?” – Pergunta.
– Pimenta. Responde a mulher.
– E isso?
– É alho.
Alguém diz que ninguém faz melhor lingüiça que ela. A mulher ri, satisfeita.
Noutra cena, afastada dali temos o prefeito Rume de Lunik-IX, Marian Pavel. Na verdade, um auxiliar da prefeitura de Kosice. Ele aponta para as letras toscas junto à porta de um barracão, e que dizem: Escola fundamental, e mais abaixo os dizeres: Crianças Rumes. Na cena seguinte ele e a mulher estão dentro do pavilhão. Não se sabe se são Rumes ou brancos. Ele mostra concertos que fez, no telhado e nas paredes feitas pela sobreposição de toras de madeira. Em outra cena está sentado sobre um bureau, vê-se que precário, mas sobre ele há 2 bandeirinhas que se equilibram sobre uma pequena base de borracha: uma é da república eslovaca e a outra é a dos rumes.
– Nós construímos o memorial para as vítimas da inundação. Era uma coisa absolutamente necessária. Nessa última enchente morreram 51 pessoas, havia muitas crianças entre elas, adultos entre os 18 e 70 anos. Preenchemos a requisição dentro do gabinete do prefeito para construir o memorial.
Mais na frente, a céu aberto, ele está abrindo a portinhola do memorial – uma grade de madeira cruzada esparsamente por tábuas finas, erguendo a argola de plástico que a une a um mourão. É um pequeno cercado repleto de cruzes e com uma pequena coluna de alvenaria na entrada, de 1 metro de altura, onde se implantou uma placa de bronze com alguns dizeres e uma relação dos mortos. Os que estavam há pouco com o rume gordo e o tocador de acordeom, também estão ali. Esse memorial é motivo de orgulho entre eles. O do acordeom fala:
– Eu perdi minha família inteira na enchente. Fiquei só no mundo. Minha mãe era tudo para mim – Ele tem 20 anos e alguma coisa, o rosto largo assentado sobre o tronco grosso, e quase sem intermediação de um pescoço. Denota comoção na fala.
Agora ele empunha o acordeom na frente do campo que se estende à suas costas. As mulheres estão ao seu lado. “Esta música fui eu que fiz”, diz, e começa a cantar, sozinho, sem acompanhamento de outras vozes:
“Houve uma grande enchente que levou minha mãe e minhas três irmãs”
“Eu fiquei só no mundo.”
“Ó Senhor! Porque o Senhor levou minha mãe?”.
“A vida dela era tão miserável”.
Algumas frases são longas e dão a impressão de não caberem na melodia atravancada pelos solavancos do acordeom. Ele canta num tom alto e estridente, mas o lamento soa genuíno. Quando termina a canção começa outra música, desta vez alegre, e imediatamente todos começam a bater palmas e a dançar.
Fragmento de “Dom Pepe” novela inédita a ser publicada ainda este ano pelo autor