“Não quero ofender os sulistas, mas quem estuda a história do Brasil sabe que a raiz da Nação está aqui. Não há favor nenhum em dizer-s...

O verbo e a verba

houaiss nordeste tambau entrevista
“Não quero ofender os sulistas, mas quem estuda a história do Brasil sabe que a raiz da Nação está aqui. Não há favor nenhum em dizer-se que a brasilidade nasceu no Nordeste” – foi o que ouvi, nos idos de 1993, do professor, diplomata, filólogo e então ministro da Cultura Antonio Houaiss.

O Hotel Tambaú, onde se hospedava, não parecia caminhar para a bancarrota e, portanto, ainda conseguia atrair próceres da República. Simpático, afável, ele me recebeu à beira de uma daquelas três piscinas circundadas por jardins, redários e passarelas. A todo instante,
Fonte: gov.br
nossa conversa era interrompida por turistas em busca do aperto de mãos e fotos nas quais aparecessem a mulher e os filhos. Solícito, atendia a todos. Mas foi ele próprio que me fez a sugestão: “Vamos sair daqui. Vamos para meu apartamento”. O amigo Sales Gaudêncio ciceroneava o homem e aplaudiu a ideia, pedindo os petiscos e o abastecimento do frigobar. E que os garçons não se preocupassem: ele mesmo nos serviria numa mesinha de centro.

A entrevista iria para a edição seguinte da Revista A CARTA, projeto editorial de Josélio Gondim semanalmente aguardado nos meios políticos, econômicos e culturais da Paraíba. Nascido em 1915 na areia de Copacabana, como assim resumiu o coração do Rio de Janeiro de onde veio ao mundo, o velho Houaiss não escondia a paixão nutrida por este nosso pedaço do Brasil em muito feito de aflições e padecimentos.

Em João Pessoa, onde os coqueiros, o vento e o mar convidam ao esquecimento da vida pobre e precária nos guetos e roças, o ministro da Cultura do governo de Itamar Franco, naquele março de 1993, recebeu medalha da Fundação Casa de José Américo, em cerimônia a propósito dos 13 anos da morte do escritor paraibano, atendeu a reitores de universidades nordestinas e fez a principal conferência do Fórum Universitário, então uma das mais ativas mesas de debate dos problemas regionais e nacionais.

Fonte: robertoamaral
Foi o projeto da unificação ortográfica que deveria entrar em vigor em 1994 e do qual ele era o principal mentor o que me fez procurá-lo. Embora ameaçado pelos incidentes no Aeroporto de Lisboa (a agressão a brasileiros que desembarcavam para o trabalho em Portugal, dentistas, sobretudo) o acordo neste sentido já havia sido aprovado pelo Parlamento português. Ao meu entrevistado custava crer que a priorização de outras matérias locais e a insatisfação do Congresso Nacional com aquelas agressões prejudicassem o prazo estabelecido para que os livros didáticos de língua portuguesa começassem a ser publicados com a mesma ortografia. E me contava: “É uma revisão fácil, porque diz respeito à redução de apenas três por cento de caracteres”.

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O mecenato quase não utilizado era outra de suas preocupações. Tanto que já havia proposto a modificação permissiva de maiores índices de dedução do Imposto de Renda a Pessoas Físicas e Jurídicas destinadoras de recursos a projetos culturais.

Fiz-lhe a pergunta: “Em tempos de crise, a cultura sempre é artigo supérfluo. De que forma seu Ministério enfrenta o problema?”. Resposta:

“Sua afirmação é verdadeira. Em 1992, nossas dotações representaram 0,04 por cento do orçamento da União. Não há outra Pasta tão apoucada quanto a da Cultura. Mas, se não tem os recursos desejados para sua vida burocrática, funcional, este Ministério tem como conseguir verbas para seus projetos”.

A lei do mecenato, em parte por ele gerida, e o Fundo Nacional de Cultura, gerido totalmente, davam-lhe a esperança da captação de uns US$ 500 milhões. Faltaria, depois disso, a superação de outro obstáculo: “É que a Lei Rouanet tem utilização um tanto difícil e o usuário a ela ainda não se acostumou”, contou.

Mas não perdia a esperança: “Vamos ver se arrancamos, a curto prazo, alguma coisa da ordem de US$ 40 milhões para o incremento do cinema e, também, já temos do presidente Itamar a promessa de que, no ano de 1994, iremos contar com a centuplicação dos recursos orçamentários destinados ao patrimônio histórico e cultural,
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de maneira que esta missão sagrada do Ministério da Cultura possa ser cumprida: a recuperação e restauração de tudo o que for tombado. Neste ínterim, queremos dispor de uma legislação pela qual possamos dar em comodato a maioria desses bens brasileiros. É preciso reconhecer esta verdade que o mundo inteiro está reconhecendo: o uso dos objetos históricos e culturais conservam muito melhor do que a mera conservação sem uso”.

O ministro não tinha dúvida quanto a isso: “O uso e a conceituação do mecenato são para a iniciativa privada. O Estado não é mecenas, é fomentador, é prestamista, emprestador, mas não um mecenas”.

A Lei Sarney, a seu ver, “permitia certas malandragens”. Para ele, não fazia sentido contemplar-se um programa da Xuxa, um espetáculo de Julio Iglesias, ou dos Trapalhões, porquanto isso já tinha público certo. O bom e real mecenato deveria ser dado a projeto que, tendo valor cultural, não tivesse rentabilidade econômica. E lamentou: “Isso serviu de pretexto para o neoliberalismo do sr. Collor, baseado nesses incidentes atípicos, e não típicos, condenar a lei como um todo. Foi um erro histórico”.

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Ministério da Cultura
Gostei de rever esse bate-papo com o ministro Antonio Houaiss. Primeiramente, por encontrar no fundo de uma gaveta, o recorte da revista que eu supunha perdido em prejuízo da coletânea de entrevistas que pretendo reeditar. Depois, por perceber que a Pasta por ele conduzida há 30 anos redondos, ainda vive na pindaíba. Quase não sobreviveu ao quatriênio há pouco encerrado.

Como eu gostaria de ter sua opinião sobre o acordo da reforma ortográfica aprovado em 2009 sem qualquer menção a seu nome nem aos esforços que empreendeu neste sentido.

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Wallflare
Acho que se revira no túmulo que o abriga desde 1999 diante dos milhões e milhões de reais hoje dispensados pelo enorme conjunto de cofres públicos ao pagamento de vozes e ritmos muitas vezes alheios à festa mais tradicional de um Nordeste carente de moradia, nutrição, saúde e educação públicas. Sua ideia de mecenato remetia os custos da promoção cultural e da preservação do patrimônio histórico ao bolso dos mecenas.

Nos arraiais de agora, ocorre-me que a criticada Lei Rouanet, apesar dos pesares, sempre exigiu a seleção dos projetos por ela contemplados. Nunca o dinheiro, ponto a ponto, de Prefeituras para o bolso das muitas bandas e cantores ocasionais, seja-lhes o repertório adequado às nossas melhores tradições, ou a estas absurdamente alheio.

Outra conversa que eu bem gostaria de ter, se assim me fosse possível, seria com o poeta Juvenal, o crítico da política do pão e circo posta em prática na Roma Antiga para entreter as massas e conter seus reclamos. O poeta se surpreenderia com o fato de que ao povaréu, hoje em dia, basta o circo para aplacar as revoltas. E, decerto, esconderia isso dos Césares.

A tempo: dei à matéria d’A CARTA, o título “O verbo e a verba”. Um passarinho me disse que o velho Houaiss gostou.

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