Quid rides? Mutato nomine de te fabula narratur
De que ris? O nome foi mudado, mas a fábula narra-se sobre ti
Horácio, Sátiras I, 69-70
Parecia tão robusto o meu espremedor de limão! Comprei-o para a óbvia função explícita no seu nome, mas não durou um mês. Como já havia adquirido outros bem mais duradouros, não entendi a causa da sua pouca durabilidade. Dei-me conta, então, de que o rebite que segura as duas articulações, com a arquimediana função de eficaz alavanca, havia saltado. Como o rebite saltou da peça, se ele é rebatido nas duas pontas? O fato me intrigou até que pus os óculos. O rebite, meu querido leitor, não havia saltado, havia quebrado,
após várias torsões sofridas no processo de espremer o fruto cítrico, que tanto encantou Goethe, cujos versos foram colocados como epígrafe na “Canção do Exílio” de Gonçalves Dias.
Mas voltemos ao assunto. Um espremedor de limão com um rebite de alumínio, eis o que os meus olhos, incrédulos, viam naquele momento! Em um átimo, veio-me à cabeça um termo técnico que, com frequência, o professor de Resistência dos Materiais dizia, nos meus saudosos tempos de Escola Técnica – fadiga do material. O material, no caso o alumínio, não suportou as repetidas tensões causadas pela força empregada na espremedura do limão, causando pequenas torsões no metal, que levaram, gradativamente, à sua ruptura. Em outras palavras, o rebite teria que ser de um outro material, não de alumínio.
Raciocinei naquele momento, 06:00 a. m., que o artesão não entendia nada do material utilizado no rebite, em relação à função do espremedor de limão. Ele pode ter sido também levado pela lei de mercado e fabricado uma peça para atender o que hoje se chama, tecnicamente, de obsolescência programada: os instrumentos e produtos vários são feitos para durar pouco tempo e, assim, gerar uma necessidade de se adquirir novo produto, tendo em vista que o reparo custará mais caro do que a aquisição, no caso, de um novo espremedor de limão.
Como estamos no Brasil, optei pelo primeiro pensamento, o desconhecimento do que se faz. Apelando também para a navalha de Ockham, cheguei a uma conclusão bem mais simples do que evocar os modelos econômicos da moderna indústria: o espremedor, como tantas outras coisas, foi feito para quebrar.
Ali estou eu, portanto, na cozinha, cedo da manhã, na preparação do café, reiniciando o mais antigo dos sistemas, tendo que espremer o limão com as mãos. Foi quando me veio à mente que uma situação assim acontece com mais frequência do que eu poderia julgar. A nossa vida cotidiana está eivada (sim, isto mesmo: eivada) dessas situações. Vivemos um momento muito específico ditado pelos discursos ou pelas narrativas, como queiram, que propagam as maravilhas, alardeiam muitas virtudes e benefícios, mas o que entregam é algo muito diferente.
Isto acontece por dois motivos: há uma guerra de informações, que corre numa velocidade muito grande, sem dar tempo para a reflexão, para o raciocínio e para transformar a informação em conhecimento. É o mundo velocíssimo da comunicação on-line. Todos, de todos os matizes, apostam na velocidade das redes sociais, para a propagação da informação, da desinformação e da contrainformação. E se acusam mutuamente de fabricantes de mentiras, que revestem com um nome dado pelos colonizadores – fake News –, embora sejam muitos a favor do decolonialidade, o que quer que isso signifique.
O segundo motivo é bem mais preocupante, porque não se trata apenas de refletir, de raciocinar e de buscar um conhecimento que seja substancial, para combater as mentiras fabricadas por todos os lados. A preocupação encontra-se no fato de que as nossas instituições parecem sólidas e firmes, mas nos damos conta de que elas foram rebitadas com alumínio: não aguentando a fadiga do material, elas são torcidas ao limite e, se não se rompem, corrompem e se corrompem.
Eu resolvo o meu problema, rapidamente, comprando outro espremedor de limão com um material melhor. Não tenho, contudo, como adquirir melhores instituições, senão com um lento processo de depuração política, que passa, necessariamente, pela Educação (assim mesmo com “E” maiúsculo). Educação que nos ajude a reconhecer e, sobretudo, evitar a implantação de esdrúxulos Ministérios da Verdade, cujas comissões tentaculares irão decidir, à revelia da própria Verdade, o que se pode dizer ou o que não se pode dizer. Para isto, criam-se novos jargões, os conceitos se tornam fluídos e a língua se renova... na mentira. É, apropriadamente, uma nova língua, ou novilíngua, em cujo cerne se encontra a tentativa contínua de querer convencer a todos que agressão e tortura são os mais lídimos direitos humanos, que ditadura é democracia e que liberdade de expressão só há nas ditaduras. A prática vem repercutindo – sem trocadilho – bem, entre os que têm o cérebro torcido e rompido pela doutrina de ferro em neurônios rebitados com alumínio, afinal de contas, gutta cavat lapidem, non vi, sed saepe cadendo (a gota cava a pedra, não pela força, mas pela frequência da queda).
Tem razão Victor Hugo, em seu primeiro romance, escrito aos 16 anos, Bug-Jargal (Capítulo XXXIX, em tradução nossa), ao afirmar que “o prolongamento da violência da alma perturba o equilíbrio do pensamento e torna-se loucura, estado talvez feliz, no qual a vida não é mais para o desafortunado que uma visão, de que ele próprio é o fantasma”.
Vou comprar novo espremedor de limão, enquanto espremem as verdades convenientes aos hébétés seguidores dos grandes benfeitores da humanidade. Aproveito para informar aos que buscam o apoio e a proteção da Constituição de 1988, que, lamentavelmente, estamos em 1984.