Periodicamente, como um cometa, surgem as listas de livros. Livros imprescindíveis, livros que devem ser lidos antes de morrer (alguém lê livro depois de morto?), livros que deveriam ser levados a uma ilha deserta... Eis que surgiu, recentemente, uma lista dos 50 livros mais vendidos da história, focada nos, inquestionavelmente, literários. A minha estranheza se manifesta tão logo termino de pôr os olhos nos selecionados. Estranho a ausência dos épicos homéricos, Ilíada e Odisseia, que vendem desde sempre, como pão quente, às 6 horas da manhã. Também não vejo ali o opus magnum de Sófocles, Édipo tirano, um dos livros que mais influenciou a cultura ocidental.
Vem daí a minha birra com as famigeradas listas, sempre incompletas, por mais que se adotem os melhores critérios e as melhores estatísticas.
A questão, no entanto, não é a incompletude, no caso específico, mas o fato de que os mais vendidos nem sempre são os mais lidos, pois as estatísticas levantadas dizem apenas do movimento comercial, não dizem da motivação da compra ou da necessidade intelectual. Observo que uma boa parte da lista é de livros para adolescentes. Nada contra livros para adolescentes, pois é na infância e adolescência que se começa o salutar exercício do hábito de leitura. Tenho, no entanto, a convicção de que, ao que ali constam, são livros vendidos mais em função dos filmes realizados a partir deles do que, propriamente, pelas suas qualidades intrínsecas. Quer dizer, houve um movimento contrário que partiu do filme para o livro, não do livro para o filme. E mais: creio que muitos dos que compraram o livro não o leram, pois esperavam encontrar no livro a mesma dinâmica que viram no filme. É como alguém que assistiu ao filme Troia e decide ler a Ilíada. A decepção é total.
Quero crer que nesses livros predominem a linearidade e aquilo que para Aristóteles, na Poética, se traduz como uma história bem contada, cujas características, elencamos aqui, em linhas gerais: um enredo em que se combinam fatos, constituindo ações, que resultam em reviravoltas e reconhecimentos (1450a); uma linguagem condimentada, para falar do trabalho metafórico, sabor indiscutível que a expressão literária deve ter; a formação de um todo, com início, meio e fim, cuja beleza se traduza pela extensão e pela ordenação (1450b); ordenação que possa ser apreendida pela memória, mantendo-se a clareza do conjunto (1451a). Tais elementos, muito possivelmente, condizem com as sagas de Harry Potter, O Hobbit, Crepúsculo ou O Senhor dos anéis. Não que estas características seculares de Aristóteles não possam estar em grandes obras, considerando que ele as retirou da caracterização da tragédia e da epopeia, sobretudo de Sófocles e Homero, aqui já citados. Há, contudo, outros elementos importantes como a predominância de uma narração psicológica, não linear, em determinadas obras, que exige um esforço maior do leitor, como se pode ver, por exemplo, nos sete livros de Proust que formam a série Em busca do tempo perdido, elencados na dita lista. O leitor deve estar preparado para histórias que não terminam, assim como histórias cujo início ninguém sabe como se deu.
Outro elemento aristotélico de fundamental importância é a verossimilhança. Entendamos aqui o termo não como a obrigação de se narrar algo semelhante à verdade, tomando como parâmetro a verdade externa ou o que isso queira exprimir. Por duas vezes, Aristóteles reafirma ser preferível, na criação poética, o impossível que seja verossímil ao possível não persuasivo (1460a e 1461b), porque a criação literária só tem compromisso com a verossimilhança interna e não externa. Deve haver, pois, uma coerência interna na obra, de modo que o irracional, ao ser introduzido na obra, pareça razoável, o que permite admitir-se até o absurdo (1460a). Daí, tornar-se verossímil que muitas coisas se passem contra a verossimilhança (1456a). Eis uma boa explicação do sucesso de narrativas mágicas e cheias do maravilhoso, que residem no imaginário das crianças e dos adolescentes. O mesmo se dá com as histórias pavorosas de lobisomens e vampiros, que agrada a todas as idades, vez que o medo nos atinge independentemente da idade que tenhamos. Nesse aspecto, Drácula, de Bram Stoker, publicado em 1897, é, ainda, a obra imbatível, dada a excelência de seu refinamento. Uma narrativa baseada em correspondência teria tudo para naufragar. Não é o que acontece.
Compreender o sentido da verossimilhança é importante, porque alguns desses livros tratam de distopias, que terminam engessadas, quando não passam de distopia sem sustentação. Veja-se o exemplo de 1984, de George Orwell, brilhante narrativa de um mundo distópico, em que o opressor se chama “Grande Irmão” (Big Brother), apesar da sua difícil individualização, que permite com mais eficácia a propaganda, efetivando a criação de comissões e ministérios da verdade, a que se junta a fabricação de uma língua dúbia, que se intitula de novilíngua, cujo objetivo é exatamente apagar a verdade e confundir as pessoas, com mentiras contadas e narrativas construídas, contando com a ajuda de um aparato repressor, que inclui o judiciário, destinado ao controle da sociedade que se opõe aos poderosos de plantão. Tudo é censurável, tudo é proibido, tudo o que antes aconteceu e está consolidado pode ser invertido de uma para outra, não tendo mais acontecido, a depender da conveniência do poder discricionário, que se passa por poder libertador.
O sucesso de Orwell vem da necessidade de embasamento da distopia em uma realidade que a ampare. O escritor utiliza-se, então, da argúcia e da perspicácia para transformar a realidade vivida em uma alegoria, como ele fez, depois que abriu os olhos para os horrores do totalitarismo stalinista, apregoador de liberdade, desenvolvimento e respeito ao ser humano, mas entregando prisão, censura, miséria, tortura, proscrição e apagamento da história. A distopia se caracteriza por uma sociedade dissociativa em cujo seio o cidadão não encontra abrigo, não por conta de patogenias pessoais, mas por elaborado sistema repressivo de controle das pessoas, provocando o medo e a sensação de insegurança e de fragilidade das instituições, que passam a existir só de fachada. Quando a distopia, que não se pode localizar no tempo e no espaço, passa a ser devidamente localizada, já não é distopia é realidade trágica, situação que se vive em muitos lugares do mundo, atualmente.
Por outro lado, as fábulas, sendo alegóricas, também podem se enquadrar em determinadas narrativas distópicas, tendo em vista que os animais assumem todas as características humanas, geralmente, as piores, para nos falar do que nos cerca e do que nós somos. Não é à toa que entre os “mais vendidos”, além de 1984, encontra-se A revolução dos bichos, também de Orwell. Ainda que eu ponha em dúvida que o primeiro seja muito lido e que o segundo seja entendido.
Livros como D. Quixote, Os Miseráveis, Crime e castigo, 1984, Guerra e Paz, os volumes de Proust, que compõem a série Em busca do tempo perdido, Cem anos de solidão e mesmo esta maravilhosa fábula moderna A revolução dos bichos, exigem do leitor tempo, disposição paciência e, claro, um hábito de leitura bem consolidado. Os livros da lista, destinados à adolescência, na minha experiência, gozam do prestígio da moda em voga, são, portanto, fenômeno passageiro. Ouso profetizar que daqui a 20 anos estarão compondo outra lista: a dos livros mais esquecidos.
Aproveito a oportunidade para ir de encontro ao que já vi nas redes sociais, a respeito de hábito de leitura. As redes nos dão a oportunidade de entrar em contato com muita gente dizendo nada, com intuito de querer inovar e de parecer inteligente, usando uma espécie de novilíngua da mudança dos conceitos e, sobretudo, dos nomes, mas com um resultado quase sempre perto da estupidez. A cada dia que passa, a sensação é de que Orwell está mais e mais atual. Alguém dizia que a expressão hábito de leitura deveria ser evitada, porque ler não é um costume, ler é uma reflexão. Qualquer coisa do tipo. Ora, ler é hábito, sim, o que não exclui a reflexão, não se tratando de puro mecanicismo. A leitura é como o oxigênio que respiramos: só nos damos conta de que é imprescindível, quando nos falta. Deve ser algo que se encontre arraigado dentro de nós, numa intimidade que nos leva a emendar uma leitura na outra, num continuum, ou ler vários livros ao mesmo tempo.
O pesquisador Laurent Cohen, do Instituto do Cérebro e da Medula Espinhal, de Paris, afirma, em matéria de Le Figaro, de 12/06 passado, que, quando nascemos não há, no cérebro, áreas específicas para acolher leitura. Estas áreas vão se formando a partir do momento em que começamos a aprender a ler. Uma vez criadas, essas áreas vão recebendo as informações provenientes da leitura e vão se fortalecendo:
“À medida que nós aprendemos a ler, as regiões e as conexões que as une, cuja função primeira não é esta, se modificam para permitir esta nova competência”.
O pesquisador utiliza a metáfora de uma “caixa de correspondência” funcionando no cérebro, a partir da modelação que a competência da leitura vai proporcionando e à medida que as conexões vão se desenvolvendo – “Ler é tudo”, é como se pode resumir a aquisição dessa habilidade. A grande boa notícia é que, mesmo na idade adulta o cérebro está pronto para esta remodelagem, pois como conclui Cohen, “o cérebro não tem data de perempção”.
Se pensarmos o hábito de leitura como uma intimidade que nos completa, poderemos até sugerir outro significado e não condenar, tout court, o termo. Há muito que venho pensando o termo hábito (habĭtus, habĭtus) no seu sentido metafórico de vestimenta e, sobretudo, como o habitar, conforme designa o supino habĭtum, do verbo habĕo, habēre, em latim, que tanto pode significar “haver”, “possuir”, como “habitar”. Pensando assim, a leitura torna-se necessária, porque ela habita em mim e, ao mesmo tempo, me veste, fazendo dela um elemento importante na composição da minha identidade.
É interessante pensar ainda que de habĭtum, supino do verbo habĕo, decorre a formação de um verbo frequentativo, habĭto, habitāre, cujo significado é “habitar frequentemente”. Este co-incidência não poderia ser melhor, pois ela produz o encontro da leitura que me habita e da leitura que eu habito, e que se faz com frequência e persistência, tornando-se a substância ativa e permanente de uma simbiose perfeita.