Victor Hugo tinha 16 anos, em 1818, quando apostou com amigos que escreveria um livro em 15 dias. Surge dessa aposta Bug-Jargal, seu pri...

Latim, farsa e poder

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Victor Hugo tinha 16 anos, em 1818, quando apostou com amigos que escreveria um livro em 15 dias. Surge dessa aposta Bug-Jargal, seu primeiro romance, escrito numa idade em que, segundo o próprio Hugo, numa página que antecede o prefácio da obra, “se aposta por tudo e se improvisa sobre tudo” (Obras completas, Romance I, Paris: Robert Laffont, 2002, p. 575, em tradução nossa). O livro, escrito dois anos antes de Han d'Islande, romance de capa e espada, tem como assunto a revolta dos negros de São Domingos, em 1791, liderada pelo personagem que nomeia a obra. Trata-se também de uma história de amor, cujo pano de fundo é a sangrenta revolta nas duas ilhas do Caribe, na América Central, que a formam: Haiti e a atual República Dominicana.

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A revolução se deu a partir da proclamação da liberdade dos escravos pela Convenção Nacional, braço direito da Revolução Francesa, destacando-se como seu líder François Toussaint ou Toussaint L’Ouverture/Louverture, epitetado “O libertador de São Domingos” e tido como líder dos “jacobinos negros”. Embora o romance de Hugo faça referências a esse líder, o centro da narrativa em primeira pessoa, é outro negro, chamado de Pierrot, mas cujo nome verdadeiro é Bug-Jargal, que dá título ao romance. Ainda assim, não se pode descartar a analogia entre eles.

O livro é, como já dissemos, de 1818, mas sua primeira publicação se dá, em número restrito de exemplares, em 1820, tendo sido refeito em 1825,
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diante do interesse de um livreiro em publicar a primeira versão. Na reformulação do livro, Hugo dispôs dos testemunhos de colonos, funcionários e de pessoas envolvidas na rebelião, que contribuíram para dar mais substância a um episódio importante, na história da América e da França, e que deveria compor uma série inédita intitulada Contos sob a tenda. Mesmo tendo refeito o texto, Hugo segue uma linha narrativa mais simples, sem recorrer às estruturas complexas que utilizaria a partir de Notre-Dame de Paris (O Corcunda de Notre-Dame): partes, que se desdobram em livros, livros que se desdobram em capítulos e capítulos que podem se desdobrar em subcapítulos. Bug-Jargal é narrativa corrida, contando com 58 capítulos.

Livro da juventude, bem mais estruturado que Han d'Islande, Bug-Jargal nos interessa pontualmente. Primeiro pela tradução que o poeta Castro Alves fez da canção que o personagem canta, enamorado de Maria, jovem branca que se casa com o capitão Léopold d'Auverney. Isto será assunto de texto posterior. Em segundo lugar, que é o cerne deste texto, o modo irônico e farsesco com que Hugo, grande conhecedor da língua latina, trata esta língua, presente de formas várias, em todos os seus romances.

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Truffi, 1834
Em decorrência da rebelião, o capitão Lépold d'Auverney, narrador da história (para os que gostam de classificação, nos moldes da teoria literária, trata-se de uma narrativa metadiegética, narrativa dentro da narrativa, em que se verifica um narrador homodiegético), torna-se prisioneiro de uma parte do exército, comandada por Biassou, um dos lugares-tenentes de Toussaint Louverture. Nessa condição, d'Auverney assiste, no Capítulo XXXV (p. 349-52), um bizarro diálogo entre o comandante Biassou e um dos seus subordinados, que reivindica um posto de oficial, elencando os seus feitos na dita revolução: incêndio de plantações, de casas, morte de proprietários, de mulheres e esgorjamento de crianças. Biassou lhe responde com uma pergunta inesperada: você sabe latim? Diante da titubeação do subordinado, surpreso com a pergunta e gaguejando para responder, numa evidência clara de que não sabe latim, nem vê qualquer relação com o saber essa língua e a revolução, ora em processo, que se beneficiou pelos serviços por ele prestados.

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Jean-Adolphe Beaucé, Séc. XIX / Ilustração do livro Bug-Jargal
A resposta negativa de Biassou para a promoção do subordinado é uma página de ironia calculada, caricaturando o zelo quase sagrado que algumas pessoas têm pela cultura, pela erudição e, sobretudo, pelo conhecimento que elas supõem outras pessoas ter de línguas como o latim e o grego. É simplesmente farsesco, revelando, pela ironia, como o poder também pode ser mantido pela farsa do conhecimento presumido.

Ao ser interpelado pelo subordinado, conforme já dissemos, Biassou lhe pergunta se ele sabe latim e se ele não souber o que se encontra escrito em um estandarte, por Biassou desdobrado – In exitu Israël de Aegypto (Na saída de Israel do Egito) –, ele, o subordinado, não poderá ser oficial. Admitindo que não sabia o que ali estava escrito, apesar da informação de Biassou que se tratava de um versículo de um salmo, no caso, o primeiro do Salmo 113, que trata da saída dos hebreus do cativeiro do Egito, Biassou responde que ele não pode ser oficial, por ignorar o latim; por ignorar que o versículo diz exatamente: quem não sabe latim não pode ser oficial...:

“Eh, bem, miserável, visto que tu não compreendes nada do que está escrito nesta bandeira, eu vou te explicar: In exitu, todo soldado, Israël, que não sabe latim, de Aegyptu, não pode ser nomeado oficial – Não é isto mesmo, senhor capelão?”
— p. 351, tradução nossa—
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J.A. Beaucé, Séc. XIX
A passagem, guardando-se as devidas distâncias, faz lembrar a anedota do advogado que, sem argumentos, contra o discurso da acusação, volta-se para os jurados e pronuncia, com gravidade, fero, fers, tuli, latum, ferre, que nada mais é do que a entrada lexical do verbo fero, portar, trazer, levar, em latim, cujo significado é apenas gramatical, de modo que o estudante possa identificar os radicais do infectum e do perfectum, além da conjugação a que o verbo pertence. O advogado, no entanto, após séria e pausada fala, para ver o efeito que ela produziu, traduz como sendo – Quem com ferro fere, com ferro será ferido... Para quem não sabe nem dos rudimentos do latim, se impressiona com a tradução, que surge como clara ameaça.

Todo aquele que se apoia na farsa, como instrumento de sustentação do poder, sobretudo o poder discricionário, precisa de uma claque que exale autoridade, no caso o capelão, que na realidade é um bufão,
para confirmar a verdade fabricada do que se diz. Assim é que o dito capelão/bufão confirma a tradução do chefe, pomposamente chamado de “Generalíssimo”, entremeando frases latinas desconexas ao seu discurso, para não deixar qualquer dúvida a respeito da grande ciência do seu chefe, que, além do conhecimento bélico, estratégico e revolucionário, sabe até o latim:

“Em seguida, retomando o seu acento irritado e misturando à sua cólera simulada algumas frases de mau latim, à feição de Sganarelle, para convencer os negros da ciência de seu chefe: – Volte para a sua fila em último lugar! gritou ele ao negro ambicioso. Sursum corda! não vislumbres mais, no futuro, de subir à classe de teus chefes, que sabem o latim, orate, fratres, ou eu te mando enforcar! Bonus, bona, bonum!”
— p. 352, tradução nossa —

Expliquemos ao leitor sem muita intimidade com a língua de Virgílio que as frases em latim, que entremeiam a fala irada do capelão-bufão, não tem qualquer sentido com relação ao que ele diz, embora pareçam muito assertivas, em incisivo tom de ameaça. As frases são moldadas a partir do personagem da comédia de Molière, Sganarelle, citado no texto, que tinha conhecimento de rudimentos de latim. Na realidade, duas delas são ditas durante o ofício da missa, quando era oficiada naquela língua: Sursum corda (Corações ao alto) e Orate, fratres (Orai, irmãos).
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J.A. Beaucé, Séc. XIX
A terceira estrutura sequer é uma frase – Bonus, bona, bonum. Como entrada lexical do adjetivo de primeira classe, tem significado apenas gramatical, indicando os três gêneros do adjetivo “bom”, e por qual parâmetro se faz a sua declinação – masculino (bonus, segunda declinação), feminino (bona, primeira declinação) e neutro (bonum, neutro da segunda declinação).

O texto dá, como se pode ver, tanto uma boa aula de latim, quanto uma aula de sociologia política, para se explicar como se pode manter o poder explorando a ignorância da população e dos apoiadores, emprestando ao líder burlesco, que “sabe as ciências que nunca estudou”, como diria o poeta Gregório de Matos, um caráter sagrado de mais infalível do que a decantada infalibilidade papal.

São as pequenas pérolas escondidas nos romances e seus significados nas entrelinhas, que fazem a grandeza de um escritor e de um texto. Aos dezesseis anos, Victor Hugo já demonstrava uma percepção que muitos contemporâneos, de 60 anos para cima, não conseguem, cegados pela idolatria aos farsantes do poder.

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  1. Texto muito bom.
    Para quem não conhecia o livro, como eu, traz à tona traços de um certo Machado.
    A conclusão do texto é indiscutivelmente acertada: o adolescente Hugo era bem mais consciente e lúcido do que muitos adultos (jovens, maduros e velhos) que, enlouquecidos por uma avalanche de fake news, elegeram presidente um negacionista, “terraplanista”, amigo de milicianos, íntimo de torturadores e genocida, que levou o país de volta à barbárie da Idade Média!

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  2. Os farsantes continuam no poder, não se engane.

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  3. Mas ao menos os negacionistas, os fascistas, os inimigos da democracia, os torturadores e os genocidas foram expulsos do Palácio do Planalto. Os seus remanescentes estão em parte do Congresso e em parte dos quartéis, mas o Judiciário e a sociedade civil consciente está de olho neles.

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  4. Mas ao menos os negacionistas, os fascistas, os inimigos da democracia, os torturadores e os genocidas foram expulsos do Palácio do Planalto. Os seus remanescentes estão em parte do Congresso e em parte dos quartéis, mas a maioria do Judiciário e parte da sociedade civil consciente estão de olho neles.

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  5. Teria sido mais proveitoso ter se atido aos comentários iniciais, e pertinentes ao assunto. Além da verborragia desprovida de argumentos e abarrotada de chavões ideológicos, ainda se esconde no anonimato. Ridículo!

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  6. Resposta autoritária e idiots típica de bostanazifascista. Os nazifascistas na são donos do mundo e, portanto, não podem decidir o que é mais proveitoso para os outros. Mais proveitoso, para mim, foi o que eu escolhi como resposta. Você, com a sua ignorância, e com a sua cegueira ideológica, não sabe separar o ideológico do FACTUAL. É FATO que o nazifascista Bolsonaro (com o perdão da palavra) fez publicamente o elogio da tortura e era amigo de alguns torturadores; é FATO que Bolsonaro incitou os seus sequazes para irem aos quartéis pedir o fechamento do Congresso (e, portanto, atentou contra a Democracia!); é FATO que Bolsonaro adiou, o máximo que pôde, PROPOSITALMENTE a compra de vacinas — e portanto é responsável pela morte de milhares de brasileiros; é FATO que Bolsonaro e seus filhos são amigos de milicianos.
    Agora, como você não lê jornais nem vê televisão, limitando-se às conversas de sua bolha ideológica e falsificadora da realidade, nunca vai perceber o monstro que é Bolsonaro.

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  7. Não me digno a responder a quem se esconde por trás do anonimato.

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