Ontem eu tive um sonho muito estranho. Sonhei que ia fazer uma vitamina de frutas diversas e, ao invés de colocá-las no liquidificador,...

Alzheimer: um caminho chamado labirinto

alzheimer esquecimento velhice
Ontem eu tive um sonho muito estranho. Sonhei que ia fazer uma vitamina de frutas diversas e, ao invés de colocá-las no liquidificador, joguei-as na máquina de lavar roupas. O equipamento desmoronou, apesar de novo em folha, e foi peça para todos os lados.

Acordei assustada e perdi o sono tentando entender o que aquele sonho, vindo do nada, no meio da noite, poderia significar. Procurando atribuir sentidos e interpretar tais devaneios, despretensiosamente, sem um viés científico, o que me veio à cabeça foi que poderia se referir à situação de minha mãe que, há alguns anos, sofre com Alzheimer.

alzheimer esquecimento velhice
MS
Ela passou a vida toda tendo problemas com depressão. No início, aquela situação era escondida, abafada, por ser vista como uma “fraqueza nos nervos”, gênio forte e até preguiça.

Foram anos e anos em crises que a deixavam de cama por meses até que conseguia, aos poucos e a duras penas, erguer-se. Imagine suportar esse transtorno, cuidar da casa, criar sete filhos e ainda ajudar o marido na manutenção e na subsistência da família.

Lembro-me de que ela fazia bolos, tira-gostos e doces para serem vendidos numa mercearia que meu pai possuía. A orelha de pau e os bolinhos de goma que ela preparava eram os melhores da cidade.

Só muito tempo depois, com os filhos já criados e encaminhados, de alguma forma, na vida, é que teve um diagnóstico e passou a tratar sua depressão. Foram infinitos dias a fio controlando a doença com medicamentos, quase sempre bem fortes e que, por vezes, ia deixando de usar por um tempo, até que nova crise se instalava. E tudo começava de novo.

alzheimer esquecimento velhice
MS
Nos últimos anos, percebemos que ela estava se esquecendo das coisas e trocando nomes e fatos. Chegou até um momento em que ela deixou de cumprir compromissos corriqueiros e de pagar as contas do dia a dia, como água, luz, telefone e plano de saúde, o que era sagrado para ela. Foi quando resolvemos interferir e tomar as rédeas da administração de sua casa. Isso foi muito difícil minha mãe aceitar. Logo ela que sempre foi tão ativa, autônoma e decidida.

Após a morte de meu irmão mais velho, há cerca de três anos e meio, ela piorou bastante da doença. Era como se quisesse mesmo esquecer aquela tragédia de perder um filho que tanto amava, considerava e admirava.

Ultimamente, entre momentos de silêncio e outros de agitação intensa, em que quer porque quer ver seus pais e seus irmãos, todos já falecidos, sentindo-se presa e achando que nós não queremos que ela volte para a verdadeira casa dela, vai levando sua vida, entre comer e achar que a estão matando de fome; dormir o dia todo e passar a noite inteira acordada; fazer algumas atividades, como fisioterapia, três vezes por semana, e ir do sofá da sala para a mesa da cozinha ou do banheiro para uma cadeira de ferro, revestida com tirinhas de plástico, a qual está na área de serviços.

alzheimer esquecimento velhice
MS
Esses fatos e impressões me vêm hoje como flashes, em pedaços que tento juntar para explicar minha própria história. O que mais me dói nem é quando não me reconhece, mas quando pergunta o que está acontecendo com ela, cuja cabeça está confusa e não sabe que lugar é aquele em que a "internamos". Esses raros lapsos de consciência devem fazê-la sofrer muito, já que não sabe explicar nem compreender esse labirinto em que se perdeu.

O Alzheimer é uma doença cruel. É como uma rua sem saída, um túnel sem luz no final, uma escada comprida solta no ar, sem o apoio de uma parede, um buraco profundo sem chão, um barco à deriva no mar revolto, um avião desgovernado, em queda livre, uma história de Trancoso ou de terror sem o fio da meada, uma estrada comprida, cheia de pedras pelo caminho, que vai se estreitando a cada passo e pela qual não se pode voltar.

O Alzheimer é, grosso modo, esquecer de experiências novas e ter lembranças esparsas de coisas antigas, como uma máquina de costura, um abano de fogão a lenha, um vestido de bolinhas, uma sandália havaiana, uma boneca que recebeu de presente, uma aliança de ouro que herdou de sua irmã, um molho de chaves para abrir a porta de uma casa que nem mais existe...

O Alzheimer é um misto de sensações, de pensamentos e de sentimentos confusos. São muitas coisas juntas e misturadas, colocadas no lugar errado, como quem vai fazer um suco ou uma vitamina e, ao invés de pôr os ingredientes no liquidificador, a fim de obter um produto homogêneo e ordenado, coloca-os na máquina de lavar roupas, provocando pane e quebra do utensílio. É, na verdade, um caminho sem volta, feito labirinto.

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Anônimo1/7/23 02:11

    🥲🥲🥲🥲🥲🥲🥲🥲🪡🧵✂️

    ResponderExcluir
  2. Nadezhda1/7/23 14:55

    "...um molho de chaves para abrir a porta de uma casa que nem mais existe...", lindo!

    ResponderExcluir
  3. Anônimo2/7/23 04:52

    Definição poética de um mal que levou meu pai. Parabéns.

    ResponderExcluir
  4. Anônimo2/7/23 14:28

    Imagino o sofrimento causado por tão cruel doença . Belo texto de amor à mãe

    ResponderExcluir
  5. Anônimo2/7/23 23:17

    Belo texto.

    ResponderExcluir

leia também