Certa feita, uma professora do ensino médio que fazia sua formação superior por um programa especial que codirigi, de nome que, indesculpavelmente, já não me recordo, coordenando atividades escolares no colégio público em que trabalhava, a título de estimular seus alunos a aprenderem a escrever, promoveu um concurso de textos, aberto, do qual, além dos alunos da sua instituição, concorreriam convidados de quaisquer níveis de escolaridade.
Fui convidado e fiquei lisonjeado. Elogiei a iniciativa pedagógica da professora e de posse das regras do certame, de plano, aceitei participar. Para todos os participantes, o texto deveria conter até uma lauda literária, cerca de 2.100 caracteres, também conhecida como lauda dos editores, e ter como título: “A Minha Mulher Maravilhosa”.
Nesse tempo, atormentado por um diabetes que começava a me castigar, costumava caminhar, à tardinha, nas areias em frente do mar de Tambaú. No deslocamento, de casa para a praia, que eu fazia a pé e sempre pelo mesmo caminho, em certo ponto, estava sempre em labuta diária, uma senhora que julguei de idade entre 35 e 40 anos. Pessoa saudável, de cabelos acastanhados, cheios, pouco cuidados, e sempre trajando vestimenta adequada à atividade com a qual estava envolvida.
De tanto vê-la, aparentemente contente naquele tipo de trabalho, só depois de meses, tomei coragem para abordá-la, indo além da saudação protocolar de boa tarde com a qual eu saudava as três ou quatro pessoas que com ela dividiam aquele métier.
Por suas atitudes, intuí que era ela quem liderava aquelas pessoas e até julguei que fossem todos de uma só família. Na verdade, eram vizinhos entre si e moravam numa mesma vila, que raras pessoas sabem da existência, localizada que está numa voçoroca de certa profundidade, em Tambauzinho, e só avistada por quem mora no alto de edifícios em derredor.
Praticara-se ali uma sorte de urbanismo social, muito em voga em governos populares, introduzindo alguma melhoria no local e nas casas, de modo a permitir que as pessoas ali permaneçam até que se encontre solução melhor. Noutros termos, uma solução temporária que se torna definitiva.
Observei que à passagem de qualquer transeunte por seu local de trabalho, esta personagem era a primeira a erguer a cabeça, em aparente ar de felicidade, respondia aos cumprimentos que lhes eram dirigidos.
Com o passar dos dias, como um caçador à busca de um assunto, tema ou de uma simples desculpa para transformar em narrativa escrita, como ironizam os de minha família, decidi transformar aquela criatura em personagem de um texto, trazendo um pouco da sua realidade pessoal e da realidade social da cidade e do bairro em que ela e nós vivemos, para este texto, e para a nossa reflexão.
Em meus devaneios, fui longe, em busca de um rumo para o texto. Pensei em Luzia-Homem, de Domingos Olímpio; pensei nas mulheres de Tejucupapo em luta contra os holandeses em Pernambuco; pensei em Diadorim, dos Grandes Sertões: Veredas, de Guimarães Rosa; pensei nas mulheres fortes da Bíblia; pensei em Ana Nery, na Guerra do Paraguai; pensei em Maria Quitéria, nas mulheres de Atenas e até nas mulheres de Martinho da Vila, buscando inspiração para esta prosa.
Afugentados os devaneios, resolvi inspirar-me em quem estava vendo de perto. Na luta diária dessa mulher anônima que me pareceu ser forte e destemida, e depois de ouvi-la em duas ocasiões rápidas, para não atrapalhar seu trabalho, achei que já podia escrever o texto com o qual concorri à premiação.
O prêmio era de três livros do pensador Elias Canetti (1905-1994), na verdade, uma trilogia autobiográfica, composta pelas obras A Língua Absolvida (1977), A Tocha no Ouvido (1980) e O Jogo de Olhares (1985), publicados no Brasil pela Companhia das Letras, em 2010, e cuja leitura vale a pena.
Segundo a crítica, na perspectiva da sua autobiografia, esta trilogia talvez seja um dos pontos mais interessantes da obra de Canetti, inspirada e enriquecida que foi, certamente, em razão do seu demorado trânsito por diferentes culturas. Canetti morou em diversos países.
Não os recebi, pois já os possuía. De comum acordo, recomendei à dileta professora que os encaminhasse à biblioteca do colégio em que ela trabalhava, para que um maior número de pessoas pudesse conhecer e fruir das ideias e do pensamento deste importante intelectual do século XX, romancista e ensaísta de nacionalidade búlgara, laureado com o Nobel de Literatura em 1981.
Eis o sucinto texto que apresentei e agora divulgo para um maior número de leitores:
Na calçada do prédio de luxo, a mulher anônima, destemida, cata do lixo a sobrevivência. Faz isso, diariamente! Para os seus e para si próprio.
⏤ Situação constrangedora? Não! Para ela, pelo que notei, não havia constrangimento com aquele tipo de trabalho, mesmo que se posicionasse de maneira crítica, diante da falta de assistência à saúde a que estavam sujeitos os que se ocupavam daquela etapa da reciclagem remunerada por produção.
Disse-me que até aprendeu a organizar a vida doméstica em função deste trabalho que se resumia em arranjar tempo para levar os filhos à escola, lavar a roupa da semana, cuidar da casinha alugada onde morava, “improvisar o almoço e o jantar da família”, como ela própria afirmou.
E sem a necessidade de que este interlocutor lhe fizesse perguntas, falou com fria franqueza:
⏤ Senhor, na minha casa, todo dia é dia de improviso! Saio logo depois do almoço e só volto às dez da noite. E aí quem comeu, comeu! Quem não comeu não come mais! Essa é a rotina daqui de casa.
São quatro bocas para alimentar e, por último, chegaram mais duas. A mãe já idosa e uma filha de criação. Vieram do sertão das Espinharas, falou aquela senhora.
⏤ Se o senhor quer saber, quem me salva é o auxílio do governo e a pensãozinha de mãe, deixada por meu pai que morreu há mais de dez anos. Pago aluguel, compro comida e algum trapo para os meninos. E outras coisas, eu vou conseguindo de porta em porta.
E ainda sem precisar que eu perguntasse, sem vitimização ou ar de sofrimento, continuou a contar histórias que a afetavam.
⏤ O marido sumiu! Disse que ia trabalhar no Rio de Janeiro. Foi e nunca mais voltou. Nem sei se o desgraçado ainda está vivo! - Filho dele mesmo, só o mais velho que já tem quinze anos.
⏤ E quer saber de uma coisa, que fique por lá mesmo, esse traste! Não quero mais saber de homem no meu barraco, resmungou, baixando um pouco o tom da voz, como a me revelar que ainda havia mágoas.
⏤ Mas, reparei que a Senhora é uma mulher bem apessoada. Veste-se bem. “Está com tudo no lugar”, brinquei cheio de temores de que ela me repreendesse diante tal provocação.
E continuei. ⏤ Como uma mulher tão bem apessoada veio parar nesse serviço pesado e grosseiro? Perguntei meio sem jeito.
Vaidosa, suas primeiras respostas não foram para o que me interessava. Foram para o que mexeu com sua autoestima e vendo que ela não respondia ao que, de fato, eu queria saber, insisti:
⏤ Moro na terceira rua para trás de onde estamos e todos os dias, na minha caminhada para a praia, vejo-a sempre aqui neste serviço que é uma etapa da reciclagem.
⏤ E como a Senhora teve acesso a trabalho? Perguntei-lhe.
⏤ Logo que se iniciou esse negócio de reciclagem, aqui no bairro, me juntei a um grupo organizado pelo Serviço Social da Prefeitura e consegui este trabalho. Não sei fazer muitas coisas! Fiquei muito tempo como doméstica na casa dos outros. Nunca quis estudar, não ganhei nada! Sai da casa onde trabalhei por oito anos sem receber qualquer indenização. Então, o que pude conseguir foi este tipo de trabalho, do qual, por sinal, até gosto, porque me sobra tempo para cuidar da casa e da família.
E, aparentando segurança arriscou, demonstrou que queria falar um pouco mais:
⏤ Acho que sou feliz! Nos fins de semana, me arrumo, vou passear, danço forró, completou cheia de orgulho e mostrando ares de que ainda era moça fagueira.
Mas, demonstrando que não estava ali para jogar conversa fora, mesmo vencida pelo cansaço, mergulhou suavemente a cabeça para dentro do latão de lixo do prédio de luxo, para catar, lá no fundo, a sobrevivência da família.
Trapeira de Tambaú, mulher anônima, mulher corajosa, lutadora que considerei Mulher Maravilhosa, como solicitou o certame.
⏤ Situação constrangedora? Não! Para ela, pelo que notei, não havia constrangimento com aquele tipo de trabalho, mesmo que se posicionasse de maneira crítica, diante da falta de assistência à saúde a que estavam sujeitos os que se ocupavam daquela etapa da reciclagem remunerada por produção.
Disse-me que até aprendeu a organizar a vida doméstica em função deste trabalho que se resumia em arranjar tempo para levar os filhos à escola, lavar a roupa da semana, cuidar da casinha alugada onde morava, “improvisar o almoço e o jantar da família”, como ela própria afirmou.
E sem a necessidade de que este interlocutor lhe fizesse perguntas, falou com fria franqueza:
⏤ Senhor, na minha casa, todo dia é dia de improviso! Saio logo depois do almoço e só volto às dez da noite. E aí quem comeu, comeu! Quem não comeu não come mais! Essa é a rotina daqui de casa.
São quatro bocas para alimentar e, por último, chegaram mais duas. A mãe já idosa e uma filha de criação. Vieram do sertão das Espinharas, falou aquela senhora.
⏤ Se o senhor quer saber, quem me salva é o auxílio do governo e a pensãozinha de mãe, deixada por meu pai que morreu há mais de dez anos. Pago aluguel, compro comida e algum trapo para os meninos. E outras coisas, eu vou conseguindo de porta em porta.
E ainda sem precisar que eu perguntasse, sem vitimização ou ar de sofrimento, continuou a contar histórias que a afetavam.
⏤ O marido sumiu! Disse que ia trabalhar no Rio de Janeiro. Foi e nunca mais voltou. Nem sei se o desgraçado ainda está vivo! - Filho dele mesmo, só o mais velho que já tem quinze anos.
⏤ E quer saber de uma coisa, que fique por lá mesmo, esse traste! Não quero mais saber de homem no meu barraco, resmungou, baixando um pouco o tom da voz, como a me revelar que ainda havia mágoas.
⏤ Mas, reparei que a Senhora é uma mulher bem apessoada. Veste-se bem. “Está com tudo no lugar”, brinquei cheio de temores de que ela me repreendesse diante tal provocação.
E continuei. ⏤ Como uma mulher tão bem apessoada veio parar nesse serviço pesado e grosseiro? Perguntei meio sem jeito.
Vaidosa, suas primeiras respostas não foram para o que me interessava. Foram para o que mexeu com sua autoestima e vendo que ela não respondia ao que, de fato, eu queria saber, insisti:
⏤ Moro na terceira rua para trás de onde estamos e todos os dias, na minha caminhada para a praia, vejo-a sempre aqui neste serviço que é uma etapa da reciclagem.
⏤ E como a Senhora teve acesso a trabalho? Perguntei-lhe.
⏤ Logo que se iniciou esse negócio de reciclagem, aqui no bairro, me juntei a um grupo organizado pelo Serviço Social da Prefeitura e consegui este trabalho. Não sei fazer muitas coisas! Fiquei muito tempo como doméstica na casa dos outros. Nunca quis estudar, não ganhei nada! Sai da casa onde trabalhei por oito anos sem receber qualquer indenização. Então, o que pude conseguir foi este tipo de trabalho, do qual, por sinal, até gosto, porque me sobra tempo para cuidar da casa e da família.
E, aparentando segurança arriscou, demonstrou que queria falar um pouco mais:
⏤ Acho que sou feliz! Nos fins de semana, me arrumo, vou passear, danço forró, completou cheia de orgulho e mostrando ares de que ainda era moça fagueira.
Mas, demonstrando que não estava ali para jogar conversa fora, mesmo vencida pelo cansaço, mergulhou suavemente a cabeça para dentro do latão de lixo do prédio de luxo, para catar, lá no fundo, a sobrevivência da família.
Trapeira de Tambaú, mulher anônima, mulher corajosa, lutadora que considerei Mulher Maravilhosa, como solicitou o certame.