Era o ano de 1977. Nelson Rodrigues aos sessenta e cinco anos, cansado, com a saúde debilitada e sem gostar de viajar, decide, surpr...

A noite em que ninguém foi ver Nelson Rodrigues

nelson rodrigues reacionario ditadura patrulhamento
Era o ano de 1977. Nelson Rodrigues aos sessenta e cinco anos, cansado, com a saúde debilitada e sem gostar de viajar, decide, surpreendentemente, aceitar um convite para uma noite de autógrafos de seu livro O reacionário, recentemente publicado, a realizar-se em Florianópolis. Nelson, que notoriamente cultivava idiossincrasias, recusava-se a viajar de avião e dizia que “quando passava do Maracanã já começava a sentir saudade do Brasil”. Mas mesmo assim viajou. No seu carro, um imenso Opala, dirigido por um motorista, e acompanhado por uma irmã. Do Rio a Floripa, direto, são dezessete horas de estrada. Não é mole. Imagine para um homem que à época, de tão frágil, parecia um ancião, cheio de mazelas, e que morreria três anos depois. Pois ele foi, ninguém sabe porquê.

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Nelson Rodrigues

@Nelson Rodrigues
Nesse momento, Nelson, apesar de controverso, já era famoso no país inteiro. Escrevia há décadas nos principais jornais do Rio e era autor de peças de teatro que muito repercutiram, nem sempre pelos motivos certos. Era, efetivamente, uma celebridade, por todas as razões: as certas, por ser inegavelmente um dos maiores autores brasileiros de seu tempo (e de todos), e as erradas, por, em plena ditadura, apoiar o governo, mesmo tendo um filho nas masmorras do regime. Essa, provavelmente, a justificativa para o inesperado convite vindo do sul, ao qual ele se apegou, também provavelmente, como uma tábua de salvação para a sua vaidade de escritor maldito e polêmico.

Depois de um dia de cansativa viagem, Nelson chegou ao seu destino e foi à livraria esperar seus leitores. Sentou-se à mesa colocada à entrada da loja e aguardou, com a paciência de um monge oriental, como ele não disse, mas deve ter pensado, frasista que era, diuturnamente. Todavia, para espanto seu e dos seus anfitriões, aguardou em vão, pois não apareceu absolutamente ninguém para pedir seu autógrafo.
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Florianópolis Christian von Koenig
Ele ficou literalmente entregue às moscas nessa noite de 1977, na aprazível Florianópolis, que, para ele, de acolhedora não teve nada, absolutamente nada. Ficou sentado por um bom tempo, com uma esferográfica na mão e uma pilha de livros ao lado, à espera de ninguém. Ruy Castro ficou pensando – e eu fico também - o que terá passado na cabeça de Nelson nesses minutos e horas intermináveis. Decepção, sim, é claro, mas principalmente solidão, a mais avassaladora solidão que alguém pode sentir numa terra estranha e hostil, a mesma solidão, naquele instante exacerbada, que sempre o acompanhou desde sempre, mesmo no Rio de sua afeição. O anjo solitário poderia ter sido muito bem o título de sua biografia magistral. Pobre Nelson.

Ruy Castro afirma que o próprio Nelson deveria ter imaginado que algo assim poderia acontecer, não só em Florianópolis, mas em qualquer lugar. Afinal, vivia-se ainda em plena ditadura e seria “normal” esse ostensivo boicote a um autor identificado com os milicos. Mas será? Não existiriam, à época, admiradores do cronista e dramaturgo para além das ideologias?
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Ado Genn
Não existiria uma única alma que reconhecesse e admirasse o gênio de Nelson independentemente de suas eventuais fraquezas? Onde a lucidez dos críticos e dos leitores comuns para distinguir o autor da obra, apreciando esta sem levar em conta aquele? Imagino que Nelson deva ter imaginado que pelo menos uma meia dúzia de abnegados admiradores apareceriam em Floripa para fazer compensar seu cansativo deslocamento até lá. Mas também é perfeitamente possível, tratando-se dele, que tenha pensado exatamente na possibilidade desse malogro anunciado e que tenha feito questão, absoluta questão, de presenciá-lo – e de vivê-lo, em toda sua plenitude, como deve ter feito Sócrates com seu cálice de cicuta, absorvido consciente e reflexivamente até a derradeira gota.

Nelson terá sofrido com o fiasco de Florianópolis? Certamente. Mas não o tipo de sofrimento autocomplacente que faria dele um coitadinho qualquer a chorar lamúrias, e sim uma dor altiva, que repetisse a frase orgulhosa e sábia de Armando Klabin: “Os que não nos querem, não nos merecem”. Pessoalmente, creio que a desolação de Nelson foi mais desse segundo tipo. Consola-me pensar que tenha sido assim. Espero muito que tenha sido assim.

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O título do livro de Nelson, objeto daquela fracassada noite de autógrafos, diz muito sobre Nelson. Chamar, em plena ditadura, auge das “patrulhas ideológicas”, independentemente de à época já existir ou não essa expressão, um livro de O reacionário, não é só muita ousadia, é muita coragem, muita segurança sobre si mesmo e seu valor, verdadeiro desafio lançado ao rosto dos patrulhadores de plantão, um tapa na cara das esquerdas em geral, mormente daquelas que pretendiam derrubar o governo a partir das mesas dos bares de Ipanema, regadas a uísque doze anos e a canapés de filé e camarão.

O fato é que ninguém foi ver Nelson Rodrigues em Florianópolis. Um dos raros gênios nascidos nestas plagas brasileiras. No Recife, para ser mais exato, mesmo chão de outra genialidade tupiniquim, o também patrulhado Gilberto Freyre, autor de Casa Grande & Senzala, monumento universal do século XX e de todos os séculos. Nelson que viveu no Rio de Janeiro, terra de outro fenômeno, Machado de Assis, também patrulhado.

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Hoje Nelson Rodrigues é reconhecido nacional e internacionalmente. Ideologia à parte, é o maior dramaturgo brasileiro do século XX, ninguém discute. Até o pessoal da USP, sempre bairrista e nem sempre inteligente, tem que engoli-lo. Mas não duvido que atualmente também não aparecesse ninguém para vê-lo, fosse onde fosse. E pelos mesmo motivos de 1977, pois ainda que não haja em nossos dias oficialmente uma ditadura, a patrulha continua a mesma – e até pior, já que é praticada nos dois polos ideológicos. Andamos para trás? Ficamos mais burros? É possível..

Morto Nelson em 1980, nada disso lhe importa mais desde então. Sua obra vivíssima e cada vez mais aplaudida permanecerá pelos séculos pairando altaneira sobre o pó e o olvido dos que o patrulharam e – quem sabe? – ainda patrulham.

A posteridade às vezes faz justiça, mas não sempre. O problema com ela é que, como também disse o mesmo Ruy Castro, não seremos seus contemporâneos. Mas a vida é assim - nada é perfeito.

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