Dia desses, estava em uma das empresas de velório da cidade cumprindo o doloroso dever de solidariedade para com um amigo que perdera ...

A funcionária do velório

velorio funeral
Dia desses, estava em uma das empresas de velório da cidade cumprindo o doloroso dever de solidariedade para com um amigo que perdera um filho. Ambiente triste, como seria de esperar, onde, pela conversa eventual e discreta com um e com outro, procura-se aliviar a tensão inerente ao momento. O leitor sabe como é. Ali naquele espaço e naquelas circunstâncias travava-se – e trava-se repetidamente — o eterno combate entre Eros e Tânatos, já explicado por Freud, as duas pulsões (de vida e de morte) que marcam permanentemente a existência dos humanos e de todos os seres vivos, resultado da finitude que a todos condena à efemeridade. Daí as conversas e eventualmente até mesmo inoportunas
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risadas de alguém menos contido: é a vida querendo se afirmar diante da morte, ali tão próxima e tão real, incômodo e palpável testemunho do fim inevitável que a todos espera. Nessa linha, tem pessoas, sabemos, que não suportam a visão nem qualquer coisa relacionada à morte, e, no entanto, comparecem a velórios, e se comportam mal, sem a solenidade e o respeito que o ambiente e a dor alheia exigem. Melhor seria que ficassem em casa, solidários à distância, não é mesmo?

Essa compreensível mas nem sempre perdoável falibilidade humana explica muita coisa indevida que acontece em velórios. Certa vez, um amigo contou-me, estava sendo velado um cidadão que tivera, durante algum tempo, certa relevância social na cidade. O falecido, idoso, era divorciado, mas estava sendo chorado principalmente por sua atual namorada, uma senhora dotada de luz própria, que tinha convivido diuturnamente com o morto nos últimos tempos e que por isso se investiu, por conta própria, da condição de “viúva”, com direito até aos adereços pertinentes. Tudo corria dentro do previsto, quando, inesperadamente, adentra a sala uma antiga e alquebrada funcionária doméstica do de cujus, com a qual o mesmo havia sigilosamente casado na véspera, já no leito do hospital em que afinal se findara. A confusão instalou-se, claro, e até a polícia foi chamada para acalmar os ânimos exaltados das envolvidas. O morto, causador do tumulto, calado estava e calado ficou. Eis aí um exemplo de tudo
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que potencialmente pode acontecer num velório, ocasião em que normalmente se espera que não ocorra nada.

As histórias são muitas, mas tudo isso é mero pretexto para a narrativa que farei rapidamente a seguir sobre uma funcionária da empresa do velório a que me referi no início. Estava eu no corredor do ambiente, ao lado de outros circunstantes, quando percebi a presença de uma moça a circular regularmente pelo local, como se estivesse a fiscalizar o bom funcionamento do serviço, o que de fato fazia, com sério ar profissional. Vestia um discreto uniforme de trabalho. De repente, tive o impulso de abordá-la para perguntar-lhe se, trabalhando diariamente naquele lugar povoado pela morte, ela ainda se sensibilizava com aquilo; ou se já havia se anestesiado, à força de tanta dor repetida, sob as mais diversas formas e pelos mais variados motivos. Ela muito serenamente respondeu que sim, que continuava se sensibilizando todos os dias com o sofrimento das famílias enlutadas, principalmente nos casos em que o falecido era uma criança ou um jovem, vítimas antecipadas da grande ceifadora. Vejam só. Parabenizei a moça pela conservação de sua humanidade, despedi-me e mais nada lhe falei, retornando ao meu grupo original pleno de pensamentos e reflexões improvisados.

Fiquei pensando depois nos médicos legistas e nos funcionários das empresas funerárias, também “acostumados” a lidar com a morte todos os dias. Será que ainda são tocados
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pelo sofrimento daqueles que perderam alguém amado ou já burocratizaram a dor dos outros, permanecendo imunes à mesma, até por uma questão de autoproteção e de autodefesa, o que é perfeitamente compreensível. Não é assim que agem os profissionais da saúde, obrigados, por dever de ofício, a enfrentar cotidianamente a aflição e o pesar?

Não sei, mas parece-me que, lá no fundo, ninguém, absolutamente ninguém se acostuma totalmente com a “indesejada das gentes”, como poeticamente a chamou Manuel Bandeira. Por mais que se defronte com ela, seja como for, sempre restará um cantinho no coração para o sentimento imposto pelas solidariedade e comunhão humanas. Casos existem em que até os irracionais se sensibilizam com a perda de companheiros de grupo. É um fato da natureza que nos faz pensar.

Permaneci alguns dias com a funcionária do velório no pensamento. Congratulei-me por ter ido até ela para aquela entrevista súbita, pois poderia perfeitamente não ter tido a iniciativa, até certo ponto ousada. E mais ainda: gostei imensamente da resposta que ela me deu, fazendo-me mais confiante, pouco que fosse, nessa humanidade tão frustrante com que convivemos. O fato é que com ela aprendi alguma coisa e enriqueci aquele dia entristecido. A vida realmente está sempre a nos surpreender positivamente, por mais que ela nos decepcione e magoe. Foi por isso, imagino, que o velho Machado de Assis, a despeito de todo seu pessimismo filosófico, imprevistamente chamou-a de “boa” na hora de morrer.


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