Foi no outono de 2006 que eu a vi pela primeira vez. Estava eu perambulando por Paris, tentando decidir se gastava meus magros euros ...

A Dama e o Unicórnio

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Foi no outono de 2006 que eu a vi pela primeira vez. Estava eu perambulando por Paris, tentando decidir se gastava meus magros euros na Shakespeare and Company ou numa lanchonete grega, um tanto pé sujo, escondida nas vielas do Quartier Latin, quando lembrei do Museu de Cluny. Venceu a sedução da coleção de arte medieval. E foi lá, entre armaduras e iluminuras, que a encontrei: a dama e o unicórnio.

Estava na semiobscuridade de uma sala silenciosa, sem turistas por perto. A tapeçaria vermelha ocupava o centro do ambiente, cercada por outras cinco menores. Não consegui tirar os olhos dela. Mostrava uma dama diante de uma tenda azul onde se lia “À mon seul désir” (Ao meu único desejo). A mulher tinha uma expressão serena e seus vestidos revelavam riqueza e refinamento. Um leão e um unicórnio mantinham aberta a tenda.

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A Dama e o Unicórnio (tapete principal) Arte medieval / Museu de Cluny (Paris)
Durante alguns minutos me perdi nos detalhes “millefleurs”, com suas flores delicadas, laranjeiras, pinheiros e mansos animaizinhos – macacos, cães, coelhos e pássaros – mas logo cheguei ao essencial: em meio ao esplendor da natureza, a mulher se despia de suas paixões. Colocava um colar no baú que a criada segurava. À sua esquerda, sobre um banco, havia bolsas de moedas.

Qual o seu único desejo, senhora?

Silêncio.

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A Dama e o Unicórnio
Ela seguiu muda, no seu eterno despojar-se. Atravessou cinco séculos retirando os excessos. Permanecerá assim até o fim dos tempos, desafiando as interpretações. Enigmática como a Gioconda.

Notei que, nas outras cinco tapeçarias, a dama usava o colar do qual se desfez na peça principal. Era belo, uma jóia e tanto. Os vestidos eram mais ricos, com brocados e desenhos.

Cada tapeçaria se refere a um dos sentidos – paladar, audição, visão, olfato, tato. Nelas, a dama come doces, toca um instrumento musical, segura um espelho, tece uma grinalda de flores (certamente perfumada) e encosta os dedos no chifre do unicórnio.

Desapego, despojamento, simplicidade no centro da cena. De Platão e escrituras asiáticas à tapeçaria, tudo desfila diante de mim. O princípio é o mesmo: os sentidos são a porta de entrada dos desejos.

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Fique atenta, sussurra a senhora.

Permaneço horas na sala imersa em penumbra. É agradável, pacificadora. Memorizo cada detalhe da pele clara, dos loiros cabelos, do unicórnio que ora protege, ora é acariciado. O unicórnio tem olhos muito humanos.

Deixei o museu no fim da tarde. Atravessei o Quartier Latin fervilhando de gente. Música alta, pessoas comprando souvenirs, mastigando nos restaurantes, correndo em direção ao metrô. Senti o cheiro de comida, desviei dos turistas deslumbrados. Em meus ouvidos pulsavam fragmentos de conversas, risadas e ruído de freios.

A Dama seguiu comigo, deixando atrás de si um rastro de jóias esquecidas.

Voltei a Cluny no outono de 2009.

Outras horas a contemplar as mãos se abrindo enquanto o colar escorregava para o baú.

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Museu de Cluny (Paris) ctj71081
Qual o seu único desejo, senhora?

Silêncio.

Na saída, comprei uma pequena agenda para o ano seguinte. Lembro de ter descido a rua com o meu tesouro. A Dama me acompanharia por todo o ano de 2010. O vento arrastava as folhas caducas e me fez abotoar o casaco. Quis sentar naqueles bancos atrás da Notre-Dame, mas estava frio demais. Devorei um algodão doce cor-de-rosa enquanto observava as turistas chinesas carregando impossivel magreza e sacolas de grifes. Pareciam de porcelana.

Pela bolsa entreaberta, a Dama do Unicórnio me sorriu, enigmática. Retribuí.

Hoje, a agenda repousa entre pedras que eu trouxe de muitos lugares e ainda não deixei deslizar para um baú. Nunca a usei. É símbolo de meu único desejo.

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