Imagine a ocorrência de um fenômeno literário, um autor traduzido em mais de dez idiomas e, portanto, conhecido por sucessivas gerações de leitores em todas as direções da Rosa dos Ventos dada a profusão e aclamação de seus romances, crônicas e artigos produzidos para veículos de grande circulação. Se a referência disser respeito a um paraibano, você, certamente, terá pensado em José Lins do Rego.
Agora, atente para o fato de que o Santa Rosa – nome fictício do Engenho Corredor, onde o moço nasceu – está a menos de uma hora de João Pessoa, se for este o início de sua viagem até o lugar aberto à visitação previamente agendada. Está a 91 quilômetros de Campina Grande e a 120 do Recife. Os saídos, porventura, de Natal, cobrirão o percurso em 2 horas e 40 minutos, o que não é muito.
Ali, você ingressa no mundo do menino Carlinhos, do Coronel José Paulino, da terrível Sinhazinha (cunhada do avô do garoto, com mandos e desmandos na casa), da doce Lili (a prima doentinha), das Tias Naninha e Maria, da Velha Totonha, do Mestre Amaro, do Capitão Vitorino, de Seu Lula Chacon e tantos outros personagens surgidos da memória, do gênio criador e da pena saborosa de José Lins.
Você não deixará de sentir suas presenças, rir com a lembrança de passagens deliciosas, ou lamentar as tragédias e dramas do Nordeste açucareiro, aqueles decorrentes da desigualdade social gritante e da falência dos banguês no fim do Século 19 retratados, admiravelmente, por um escritor capaz de misturar, à perfeição, ficção e realidade. Ele assim o fez tanto e tão bem que muitos dos contemporâneos confundiam-se entre o ocorrido e o inventado.
ImagensFrutuoso Chaves
“Já não sabemos onde termina a mentira e entra a verdade”, disse-me, certa vez, Dona Montinha, de quem o primo famoso elogiava os doces de laranja. Antiga proprietária do Corredor, ela desconhecia que a poetas e romancistas é permitido tudo aquilo que nos venha em benefício da emoção, do encantamento. No que diz respeito aos romances do Ciclo da Cana de Açúcar, a maestria de José Lins então produziu, não menos do que belíssimas tramas, enredos de indiscutível valor documental.Estive lá há poucos dias. A restauração da Casa Grande, Sala de Purgar e Senzala, com o concurso indispensável, por dever institucional, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico da Paraíba, mataria de inveja o Velho Bubu, o avô por quem José Lins foi criado após a morte prematura de Dona Amélia, sua mãe. O denodo e o capricho dos atuais proprietários, o casal Alba e Joaquim Soares, reconduziram aquele ambiente a seus tempos áureos.
Revi, na varanda principal, o furo no piso de tijolos, marca e marco da história do Nordeste canavieiro. Ali, Bubu, sentado em um banco, girava a bengala a ponto de perfurar um daqueles blocos, no fim das tardes e dos pastoreios: “O sol que nasce no Santa Rosa morre no Santa Rosa”, ele assim contemplava seu mundo, de horizonte a horizonte, enquanto os moleques repunham o gado no curral.
Ao menino que fui o filho mais novo de Dona Montinha explicou a diferença entre o que tinham por camarinhas e quartos. Nas duas primeiras, ambas com portas para ambientes internos, dormiam as mulheres, todas afastadas das janelas e, por conseguinte, do risco de namoros furtivos.
Corri ao buraco feito por Carlinhos numa daquelas portas a fim de espionar a nudez de primas e tias. Está lá, tal e qual. A restauração cuidadosa nada apagou. Bancos rústicos, cadeiras de palhinha, gramofone, cristaleiras, ferros de engomar, escrivaninhas, mesa comprida como as dos banquetes coloniais recompõem o cenário e o espírito da velha casa.
Nas paredes, alguns dos ancestrais contemplam de suas molduras as visitas que lhes chegam neste início de um roteiro cultural e histórico que precisa e deve integrar o calendário turístico regional com suas oportunidades de emprego e renda em favor de uma área, penosamente, disso sempre tão necessitada.
Um desses quadros retrata o grupo de Antonio Silvino ali chegado para desespero das mulheres, todas diante do Oratório doméstico em súplicas ao Céu. Quieto e de voz mansa, o cangaceiro, em mera visita de cortesia ao dono da casa, decepcionava aquele pirralho. “Eu fazia outro, arrogante e impetuoso, e aquela fala bamba viera desmanchar em mim a figura do herói”, contou José Lins em “Menino de Engenho”, o primeiro dos seus livros.
A Casa de Purgar, também completa e cuidadosamente restaurada, expõe balanças, pesos, tachos, pilões e formas de ferro para os pães-de-açúcar cujo formato, único em todos os engenhos do País, inspirou a denominação do morro famoso do Rio de Janeiro. E ainda sobra espaço para um auditório onde os visitantes podem ouvir sobre o Corredor, sua história e seus personagens. Joaquim me contou que o ambiente já serve a encenações, uma delas por alunos do colégio local acerca dos contos da Velha Totonha.
Não é fácil, nem barato, manter uma estrutura dessas, sobretudo num País onde o Poder Público costuma faltar a iniciativas dessa ordem. Mas, com a determinação, a criatividade e o arrojo claramente já demonstrados, Joaquim e Alba, sem dúvida nenhuma, darão conta do recado. Que assim seja.