Sou dos que resistem a aceitar como igreja a edificação da Universal que faz vizinhança ao prédio onde moro. Fala-se da imensa for...

Um fundo de reservas

igreja universal reflexao conivencia
Sou dos que resistem a aceitar como igreja a edificação da Universal que faz vizinhança ao prédio onde moro. Fala-se da imensa fortuna do seu dono e fundador, da sua mitra inventada, e sem ser um religioso praticante, sem brigar por religião, olho com indiferença, o enorme edifício que vem servindo de templo e de referência ao meu endereço. Nossa antiga empregada, mãe de dois filhos, estava entre os seus adeptos. Morava num fundo de quintal alheio, esfalfava-se em “extras” para mantê-los regularmente na escola pública, mas não relaxava o “dízimo” que, analfabeta, ela dava graças a Deus satisfazer e pronunciá-lo com todas as letras e acentos.

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Celyn Kang
Há vinte anos aquilo era um buraco enorme, escavado por construtora certamente em falência, de onde surgiu e subiu, como se fosse de papelão, o edifício de quarteirão inteiro. Propiciou-me a calçada que, nesse tempo todo, me livra da vereda encapoeirada por onde eu tinha de passar, tirando os carrapichos, a caminho de casa, pois a calçada ao lado, descendo para o meio-fio, era e continua sendo um longo e perigoso escorrego.

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GSView
Por mais que me certificasse de ser a calçada de domínio público, considerava-me pisando onde não devia. Passos seguros, boa sombra, mas... E subia à cabeça do então setuagenário a extrema que dividia com cedros e paus d`arcos o espaço de terras rurais onde o menino podia pisar. “O lado de lá, nem pensar!” – era a recomendação.

Os anos passam a abater o ânimo das pernas, a puxada do fôlego, e a antiga rodada pelo quarteirão começa a ficar muito longa. Além de tudo, as calçadas não ajudam, mal sentadas, a cada dez metros um entrupicão. E eis-me de olho comprido para a quadra reservada ao estacionamento da tal igreja, aberta cedinho com mais um banco de cimento em torno da árvore de fronde larga. Cansou, tem onde sentar. Todo mundo passa ali, encurtando o caminho, indo e vindo da Epitácio. As minhas reservas com a igreja serão do conhecimento do bispo ou mesmo do vigilante? Será indébita ou desonesta a minha invasão?

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E resolvo me enfrentar, cedinho da manhã, o estacionamento inteiro ao meu dispor.

Fui lá, vim cá, cumprimentei o guarda, fui correspondido e terminei num descanso, sentado à sombra da grande cássia ou castanhola (não prestei atenção) que sobrevive às irmãs já passadas na serra para dar lugar ao carro.

Há poucos dias, passada a neblina, saí contando os passos pela quadra que já me chega acolhedora, de um acolhimento mudo, de silenciosa conivência entre mim e a igreja do bispo. Dei a última volta forçando um pouco a respiração, a garrafinha de água já esvaziada, dando lugar a que o vigilante se aproximasse, aderisse à lentidão dos meus passos para indagar se eu estava precisando de alguma coisa. Morenão, robusto, de voz forte, ofereceu-me água. Agradeci, disse que aquele é o meu normal, e à noite, depois que jantei, tirei a marca que deixara na releitura de “Crime e Castigo” para nunca mais voltar ao seio daquela humanidade do escritor russo.

Hão de perguntar: o que uma coisa tem a ver com a outra? De sã consciência eu mesmo não sei.

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