Jamais esquecerei. Era eu criança, e nossa lavadeira Sinha Vina (Minervina Francisca de Assis). Contadora de histórias, sentada no chão, em noites quietas. Morava no antigo Oitizeiro (hoje, Bairro dos Novaes) numa casinhola em barro e palhas. Vinha lavar nossa roupa a pé e voltava. Chamava os ônibus e autos de “besouros” e preferia vir pela Rua da Frente de Cruz das Armas, a trouxa sobre a cabeça, pisando firme; tinha a idade média, deixava a roupa limpinha, cheirosa (lavada com sabão de barra – “Jabacó”).
Contava a vida em seu tom mais humilde, trazendo experiências dolorosas. O marido, Pedro Prudêncio da Silva, viciado na aguinha amargosa e no cigarro boró. Vendia rolete de cana nas festas de rua. Mancava de uma perna, devido a uma queda. Ela temia por ele quando saía lá de casa de volta à Rua da Alegria, onde morava.
Chegava a tremer. Criança, num tempo em que o machismo era por demais saliente (como o é ainda) deixando marcas inapagáveis em quem é vitimada, não só as do corpo, as chamadas “ronchas”, e, pior as da alma. Sinha Vina carregava uma arma e tinha um segurança: o rosário em contas brancas e azuis e São Sebastião. Possuíamos uma imagem grande do santo (Oficial romano que pregava o Evangelho, em meio a seus comandados e que, ao contrário de haver morrido varado de flechas, foi morto a pauladas e sacudido numa sarjeta); esta escultura mamãe a presenteou, deixando-a felicíssima.
Praticava uma devoção ingênua, pura, constante naquela fé que dispensa tratados e muito teologismo escrito ou em sermões prolongados para que se fixe, com raízes profundas em alguém. Nossa lavadeira tinha um amor por Deus e pelo seu Sebastião uma devoção capaz de remover montanhas. Testemunho alheio ao pensamento de crentes e ateus: cantava benditos enquanto as babas do sabão escorriam pelas paredes da lavanderia no fundo do quintal.
Sempre dormia conosco e com ela aprendi muito: histórias de Trancoso contadas de improviso. Ela me apresentou a “princesa da pedra fina” e o “cágado inteligente”. Ao embalo de suas saborosas narrativas, adormecia, deitado, a rede armada na sala grande. E sonhava com fantasiosas aventuras. No dia seguinte, arrumava os panos, calçava a chinela, acendia o cachimbo, as unhas aparadas com uma quicé (não gostava de tesourinha), abria o portão e subia a ladeira de regresso. Antes de sair, com um rosto apreensivo dizia, após se benzer: “Queira São Sebastião que Pedro não esteja “chumbado”. Uma vida simples, transparente, diáfana, limpa como os lençóis que deixava estendidos nas cordas do quintal.