Comecemos por sim e não. Uma costuma representar aceitação plena e a outra rejeição absoluta. Pares de opostos – há até uma palavra sânscrita para isso: dwandwas. Noite e dia, chuva e sol, alegria e dor, sim e não.
O “sim” acaricia os sentidos, deslizando feito mel na boca e enchendo de alegria o coração. Três letras traduzem aprovação, vitória, sucesso. Uma injeção de confiança a materializar sonhos. Mas gosto de tirar as máscaras do lugar comum. Ponho uma lupa sobre o “sim”. Sou grata por ele e o desfruto como fruta suculenta entre os dentes, e ainda assim me permito examiná-lo a fundo. Há algo mais sob um “sim”. Comecemos por algo bem disfarçado sob o manto da alegria: a forma como nos cai bem a confirmação externa de que tomamos o rumo certo e que nossos esforços valem a pena. Nós, os eternos dependentes da validação alheia. Definitivamente, não nos bastamos.
Não tome por pessimismo o meu inabalável realismo. É que bem conheço a sensação embriagadora do “sim”. O sabor inigualável de ser valorizado, reconhecido. Ele nos toma por inteiro. E sorrimos, despreocupados do futuro, esquecidos que as reviravoltas da existência podem transformar a felicidade imediata em amargo despertar. Há de se estar preparado. Tudo o que se conquista vem com uma carga extra e invisível: um apego que nos faz tremer à simples ideia da perda. O “sim” vicia.
Por outro lado, um "sim" não é a única medida de sucesso. Sob a máscara do “não”, tantas coisas significativas e valiosas podem nos chegar. O “não”, bem verdade, explode no corpo, acelera o pulso e arranha a autoconfiança. Três letras negam o que desejamos e acreditamos merecer. O “não” é subtração. Dói, mas pode ser útil professor nos quesitos aceitação da realidade crua e lidar com a decepção.
O ego machucado garante (com a falsa segurança que caracteriza os egos) que o “não” é fracasso, mas é bastante sábio recusar essa armadilha. Conheço as tramas ególatras. Se titubear, o ego convoca um auxiliar: surtos de imaturidade em plena vida adulta, ecos de uma infância que se recusa a ir embora. Pior: estes podem despertar uma vocação autoritária, que se arrepia quando se vê contrariada – aquela parte de nós, birrenta e voluntariosa, que não lida bem com a derrota, e se imagina senhora de toda razão.
Diante do “não”, há vários caminhos: desistir, afivelando ao rosto uma expressão de falsa indiferença; perder o controle e revidar, em comportamento destrutivo; inspirar devagar, recolher-se e passar os próximos dias examinando os detalhes, compreendendo o valor da experiência (mesmo que não pareça valiosa no calor da hora) e decidindo os passos seguintes. O último torna o “não” um aliado, catapulta para a coragem de tentar novamente, para não me deixar esmagar. Gosto de pensar que ele nos força a encontrar novas perspectivas, outras formas de abordagem ou um caminho diferente. Desanimar ou desistir é rota de acomodação. Reerguer-se é o oposto: requer esforço. O tempo de reflexão sinalizará se a persistência no desejo negado será gesto de coragem ou murro em ponta de faca.
Pensar sobre isso me conduz à palavra “talvez”. Simboliza a dúvida, princípio fundamental da capacidade de raciocinar. Elementar para a sobrevivência intelectual. Sem nos permitir duvidar, seremos eternamente reféns de bolhas e gurus, ídolos e palpiteiros; fechados à oportunidade de expandir o horizonte para além do umbigo.
O “talvez” tornou-se particularmente difícil em um mundo polarizado que encoraja a tomada de partido sem exame acurado, e a aceitação passiva de visões enviesadas. Desafiar o senso comum é declaração de independência, mas exige humildade e discernimento. Este é essencial para identificar a linha fina entre ser eternamente-do-contra e se permitir as próprias ideias e perspectivas. Já a humildade é vacina contra a síndrome de vestal heroica, na qual a criatura se julga detentora de toda virtude e se impõe a missão de salvar a coletividade da ignorância e da perversidade.
De alguma forma sempre estamos espelhando tendências, opiniões e ideologias alheias, embora sonhemos com a originalidade. Ao duvidar, contudo, podemos começar a descobrir crenças e valores que vivem quietos nos escaninhos da nossa psiquê. É uma chance autoconcedida de entender o mundo ao nosso redor e de examinar detidamente a origem do que proclamamos com tanta segurança. Serão mesmo nossas crenças ou foram adotadas por conveniência ou impostas pelo espírito de manada?
O “talvez” é uma concessão a si mesmo, uma carta de confiança na própria sabedoria. Outras ideias são bem-vindas (a troca de experiências é enriquecedora), desde que sejam tão-somente ponto de partida para que floresça o raciocínio próprio. O caminho oposto é terceirizar a mente, dando a outros o direito de nos tutelar, decidindo sobre o que pensar ou sentir, como agir ou interpretar fatos.
A abertura a outras possibilidades, embutida em um “talvez”, permite entender melhor as situações cotidianas. Euforia do “sim” e decepção do “não” cedem espaço para uma análise menos passional e mais realista do cenário. Nas relações pessoais, conduz a examinar as motivações e contextos por trás de ações e opiniões alheias – e isso desarma. Na prática, um passo em direção ao entendimento. Nos debates intelectuais ou políticos torna-se igualmente útil. Confrontada com ideias diferentes, a solidez do edifício argumentativo é testada.
“Talvez”, seis letras, o dobro de “sim” e de “não”, abrindo caminho para um exame profundo. O definitivo teste é o do tempo. Nada garante que o “sim” e o “não” de agora darão bons ou maus frutos.
Permito-me a dúvida.
Publicação original em soniazaghetto.com