Mais uma vez, preciso dominar a emoção, para falar sobre o acadêmico, o escritor, o amigo Odilon Ribeiro Coutinho. Conter a emoção que ...

Odilon Reencontrado

Mais uma vez, preciso dominar a emoção, para falar sobre o acadêmico, o escritor, o amigo Odilon Ribeiro Coutinho. Conter a emoção que se instala no descompasso do coração, na fria umidade das mãos, no timbre de voz, que já não responde à segurança habitual.

Sempre considerei que a Sessão Acadêmica do trigésimo dia tivesse sido minha situação-limite. Naquele momento, para não reforçar ainda mais a tristeza e a saudade, optei pelo discurso da aceitação da morte, sustentado em sábios argumentos de pensadores e poetas. Diante do inevitável, projetei a esperança de uma outra forma de presença, embora o tom de voz destoasse da força de convicção dos conceitos. E, os versos do nicaraguense Pablo Antonio Cuadra, em que me apoiara, se dissolvessem, por instantes, em borrões marejados sobre o papel.

Pablo Antonio Cuadra PAVSA
Salvou-me a memória, garantindo a enunciação dos questionamentos essenciais:

Perguntou a flor: o aroma acaso me sobreviverá? Perguntou a lua: alguma luz guardo depois de morrer? Mas o homem disse: por que acabo e fica entre vós o meu canto?

Esta Meditação ante um poema antigo demarca, para a natureza humana, o lugar soberano que ela ocupa no universo. A imensidão, o mais intenso esplendor, nada se sobrepõe, nada se compara ao milagre da consciência; à dignidade de pensar; à transcendência do espírito; à consciência moral que escolhe como ponto de referência a infinitude do céu estrelado; à arquitetura da linguagem que estrutura o significado e a permanência do Ser.

Odilon Ribeiro Coutinho@Williams Trindade
A decisão de reunir, em livro, os textos inéditos de Odilon tem origem nesta elevada ordem de valores. Não se confunde com um gesto de vaidade ou de interesse, como não corresponde a uma prestação de serviço.

Na ação compartilhada pela família, por amigos e pela Fundação Gilberto Freyre, prevaleceram a compreensão e o sentimento de que era preciso fazer Odilon reviver através da palavra. Perenizar-se em livro, no que foi pela vida inteira o seu objeto de desejo.

Posso afirmar que este propósito representou, para nossa querida Solange, no seu mais difícil momento de superação, uma ordem de vida. Cada novo texto descoberto era um reencontro com Odilon, no seu estilo de dizer, na exposição de seu pensamento, na defesa apaixonada dos valores que configuraram sua visão de mundo sempre original.

Quando as possibilidades do escritório e da casa se esgotaram, Solange recorreu aos arquivos da Fundação Gilberto Freyre, acolhida pelo afeto e pelo entusiasmo de Fernando, cuja falta nessa mesa muito nos entristece.

Gilberto Freyre Fundação Gilberto Freyre
E, dos velhos papéis desordenados, do acúmulo de envelopes amarrotados, do arquivo de pastas empoeiradas, a recuperação do "imortal soluço de vida que rebentava/que rebentava daquelas páginas".

Coube-me a tarefa de selecionar e organizar os textos para a composição do livro. Pela predominância temática, logo se impôs Gilberto Freyre ou o ideário brasileiro. Quarenta artigos de jornal escritos de 1987 a 1988, constituindo, no conjunto, um verdadeiro ensaio. Mais oito longas conferências sobre variados temas do universo gilbertiano.

Nele o discípulo lê o mestre com indisfarçável admiração. Mas, a natureza da leitura decorre, criteriosamente, do conhecimento absoluto do universo criado por Gilberto Freyre e da preparação intelectual de Odilon para abordá-lo numa perspectiva multidisciplinar.

Nada escapa a Odilon, em relação a Gilberto Freyre: todos os seus livros, com os conceitos fundadores, todas as influências intelectuais decisivas entre Gilberto Freyre e grandes expressões da nacionalidade, como Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, José Bonifácio e Rui Barbosa: a veemente contestação aos críticos do Mestre de Apipucos; a descrição da inovadora linguagem que estrutura o estilo gilbertiano; a significação cultural e política do criador de Casa Grande e Senzala para a Nação brasileira.

Aaron Burden
O trabalho de seleção e organização é uma atividade crítica consagrada que, além da interpretação e avaliação, exige também o estabelecimento do texto, ou seja, a responsabilidade pela escolha da forma definitiva a ser preservada. Nas edições póstumas sem a revisão do autor e sem poder mais consultá-lo, o organizador precisa decidir, com critério, questões delicadas que se impõem antes da publicação. Precisa assumir a finalização do texto.

Naturalmente, o padrão adotado é o maior respeito ao original e a menor interferência possível. No entanto, além das várias revisões (antes e depois da digitação), é necessário ainda preencher as lacunas.

No caso dos escritos de Odilon, isso significou criar títulos para algumas conferências e para o livro.

Senti-me gratificada, ao receber do escritor Edson Nery, pela autoridade intelectual que representa, a aprovação para as escolhas que fiz, sempre a partir da idéia central dos textos, procurando preservar o pensamento do autor. Por sugestão de Edson Nery, foram substituídos também os números que identificavam os dez primeiros artigos. Entusiasmado, o prefaciador se encarregou desses títulos.

Sendo assim, não é por acaso que se fala em co-autoria, na referência ao trabalho crítico de seleção e organização de textos. E, em decorrência de tal entendimento, é comum encontrar, na capa do livro, o nome do organizador.

A TOPBOOKS representa o desejo manifesto de Odilon, que admirava o nível de qualidade da editora e mantinha laços de amizade com o proprietário. Solange, Odilon Filho, Eduardo e Gilberto respeitaram a vontade do patriarca-escritor. A bela edição e a garantia de que o livro será distribuído, nacionalmente, justificam a opção condizente com o valor e o mérito de Odilon.

O que não se entende é que a editora tenha suprimido a ficha catalográfica. E, em desacordo com a revisão final, pudesse traduzir a sigla UFPB como Universidade Federal de Pernambuco.

São registros que se impõem em razão do significado e relevância a eles conferidos pelos que se dedicam ao trabalho intelectual Mas, estamos vivendo um momento de plenitude. Um precioso e raro instante de verdadeira e justa alegria, porque não participamos de uma festa exterior e banal, mas de um ritual de consagração e comunhão de sentidos. Uma festa da palavra. Da palavra que foi, para Odilon, um valor essencial sobre o qual tantas vezes refletiu com verdadeiro fervor, firmando conceitos que revelavam sua compreensão erudita e literária sobre a linguagem e sobre o escritor.

Odilon Ribeiro CoutinhoWilliams Trindade
Ele considerava as palavras como entes vivos. E, explicava: "alguns desses entes reagem de modo tão surpreendente, que, se tratados de modo brusco, recolhem-se, retraem-se e fecham-se como sensitivas; e, como uma moura, cobrem o rosto, ainda não revelado, com o véu da esquivança. Às vezes, é preciso arrancá-los de nossa própria carne, que nela se cravam como espinhos pungentes, para que se possa criar o corpo coleante do texto literário. Outras vezes, faz-se necessário colher esses entes como se colhe uma flor perigosa e fascinante: uma edelweiss que baloiça na escarpa vertiginosa sobre o abismo."

Hoje, Odilon habita o reino das palavras. Mais do que nunca, é um Ser da Linguagem. E, nesse instante, restabelecem-se para ele as hierarquias verdadeiras, na possibilidade criada para o reconhecimento de seus atributos de escritor.

Não posso conceber outra forma de finalizar esta apresentação de Gilberto Freyre ou o ideário brasileiro, senão recorrendo aos versos de Walt Whitman, tantas vezes repetidos por Odilon para caracterizar o escritor, que "instila no verbo que se faz carne literária o seu próprio sangue e as emoções, delírios e fantasias que jorram das fontes interiores de sua vida”.

"Amigo, isto não é um livro.
Quem toca nele toca no homem”

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