Dizem muito da inteligência artificial, da possível empatia que pode ser inserida na forma como a frase é elaborada, como as palavras são dispostas no texto. Digo inserida pois a formatação do virtual passa, pelo menos por muito tempo, pelo controle humano. Já ouçof muitos colegas de profissão afirmarem que isso já está ocorrendo e apresentam alguns exemplos nos nossos grupos de whatzapp. Chegam a dizer que a IA (esta é a forma mais usual de se referir a inteligência artificial) já consegue, em alguns exemplos que veicularam, superar um diálogo presencial.
E digo isso apenas por minha origem “analógica”? Estarei adotando uma postura anacrônica?
Bom, que seja, mas não posso descartar as circunstâncias que ajudaram a moldar o meu olhar para o Mundo. Não posso desconsiderar o papel dos sentidos na comunicação humana, da “leitura” da expressão corporal, das oscilações da voz, de todos os “tons” de que uma mesma palavra pode se “vestir” ao nos chegar na fala de uma pessoa.
Vejamos um exemplo. Quem sabe assim serei mais claro?
Vou escolher a palavra preto. Vocês verão que essa palavra, tão necessária em nossa discussão atual, não foi escolhida à revelia.
Sabemos que os termos preto e negro circulam nas mídias, fazem parte do debate racial em nosso País onde a língua, as expressões, as frases, os costumes foram regidos pelo colonizador europeu. Diz-se inclusive de um “racismo à brasileira”, algo irônico, dissimulado, mas não menos perverso.
Bom, voltemos aos cinco sentidos, aos múltiplos tons das palavras.
Todos os envolvidos em relações conjugais mais estáveis sabemos que os pares se denominam em suas falas, se chamam dentro de uma casa, iniciam suas conversas com nomes ou termos que são sempre revestidos do “humor” da relação naquele momento.
Diga-me leitor(a), quando te chamam pelo nome, não te chega uma “dorzinha” na espinha? Não é outra coisa, quando nos chamam por um determinado “apelido” carinhoso adotado ao longo dos anos de convivência?
E foi assim que a palavra preto entrou em minha vida. Por mais que o convívio social me apresentasse, com a maior nitidez possível, o papel que os afrodescendentes ocupavam na sociedade, todas as restrições históricas e desigualdades, eu tinha um olhar mais restrito ao ambiente doméstico, sobretudo aos meus pais. Criado praticamente sozinho, tudo o que ocorria em minha casa era absorvido com muita intensidade. Na minha infância existiam livros, poucos brinquedos, a matinê de domingo no cinema para assistir a Tom e Jerry, e as visitas à floresta de nossa fazenda no final de semana.
Quando os meus pais estavam bem, diziam: Pretinho, vem aqui me ajudar... Pretinha, onde você guardou a minha camisa? Preto, leva o Jorginho para dar uma volta de carro... Preta, onde você guardou a minha camisa?
Os meus pais só se chamavam pelo nome quando a situação estava pesada. E, vejam bem, o simples uso do diminutivo pretinho já dizia que as coisas estavam às “mil maravilhas”...
E não é só a palavra... A forma, o gestual, a oscilação do tom da voz, as palavras escolhidas para compor a frase…
Não quero com isso deixar de reconhecer que a linguagem seja socialmente construída, mas, recorrendo à consagrada frase de Ortega y Gasset, busco reafirmar que “eu sou eu e minhas circunstâncias”. E a forma de essas circunstâncias atuarem em minha vida pode ser uma escolha.
Sim, parece que, para o brasileiro, o termo preto é revestido de um juízo de valor positivo e o termo negro é utilizado para emitir juízos negativos... Mas não quero discutir aqui a visão dita, em vários aspectos “romântica”, de Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala, não quero levar a nossa conversa para questões teóricas que, embora fundamentais, não tratam do sentimento transmitido pela palavra preto na vida do menino que fui.
Passaram-se os anos.
Escrevi o meu primeiro poema, transformei-o em um samba e apresentei-o no concurso de música do meu colégio. Esse samba era sobre a Bahia.
Comprei um pandeiro, estava no terceiro ano primário, e fui cantar o meu samba para o auditório. Deve ter sido tão hilário que me deram o primeiro lugar.
A diretora do Colégio do Carmo, irmã de cujo nome não me lembro, me perguntou: “Não entendi por que você fez um samba... e sobre a Bahia?”
Vai que Freud explica....
E me apaixonei pelo samba, me apaixonei por Vinicius de Moraes e confesso a minha inveja quando ele se denominou o branco mais preto do Brasil... Eu queria ser o sucessor dele nesse mérito....
E vieram Pixinguinha, Cartola, Nelson Cavaquinho... Minha paixão pela Escola de Samba Mangueira que suplantou a pelo futebol.
E comecei a tocar samba, participar de muitas rodas de samba ... Criamos um bloco que foi relativamente conhecido nos anos 80...Vieram grandes amigos e seus apelidos “politicamente incorretos”....
Mas era tudo sem nenhum olhar crítico para questões sociais, tinha até “apagado” uma vivência importante de infância com uma comunidade quilombola em São Mateus…
Surgiu o interesse pelo escravismo e, compulsivamente, fui ler sobre o assunto. Não deve ser coincidência que os primeiros livros que li, quando resolvi diversificar as minhas leituras que, nos últimos 25 anos, tinham sido somente sobre temas de medicina, foram a trilogia de Gilberto Freire.
Há pouco tempo fiz uma primeira intervenção consciente como escritor, escrevi poemas para uma exposição de fotos do amigo Vitor Nogueira, uma denúncia incisiva e incontestável sobre as condições dos moradores de rua. Enfim um ato responsável, de resgate da palavra que tornou mais lúdico o meu convívio familiar.
E chegamos ao fim, grifando com o preto o meu nome, pois é assim que quero ser. E essa responsabilidade me chegou pelo doce da palavra preto que ouvi na boca de meus pais. Talvez a palavra mais doce que os ouvi trocar em sua relação tão conturbada e que ainda tento entender para interpretar o furta-cor de meus sentimentos.