Certa vez, depois de aterrissar de uma viagem trazendo na bagagem tantas lembranças boas, cheguei para escrever em uma destas páginas e...

O lago perpétuo

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Certa vez, depois de aterrissar de uma viagem trazendo na bagagem tantas lembranças boas, cheguei para escrever em uma destas páginas em branco e não sabia nem o que falar... Não me dispus a usar a velha falta de assunto como tema, mesmo porque assunto em mente era o que não faltava. Mas depois de uns dias bem vividos longe de onde se mora, o corpo chega, mas a cabeça continua um bom tempo ainda por lá.

As recordações são mesmo um dos preciosos tesouros da mente. Saber usá-las é um segredo igualmente de ouro. Não temos dúvida que recordar pode até ser melhor do que viver, pois viver certos momentos, nós vivemos apenas uma vez. Mas recordá-los é possível quantas vezes nos permitam a felicidade e a gratidão das boas lembranças.

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Lago di Garda (Itália)
Valentinagius/Jonas-von-Werne/Kordi Vahle
Não é à toa que Osho tenha dito com enfatizada advertência que a mente pode agir tanto em nosso benefício como se tornar a maior inimiga. Por isso é preciso estar bem atento às suas artimanhas. Jesus igualmente alertou para os perigos do apego ao tempo, ao futuro, ao passado, quando ensinou que “a cada dia bastam os seus cuidados”, convidando-nos a viver em alegre descontração, confiando na força divina que nos movimenta com as galáxias, sem estar preocupados com o passado nem o porvir. E ainda foi mais claro ao responder aos discípulos, ávidos por saber quando viria o Reino de Deus, e disse-lhes que “o céu está dentro de nós”. Em verdade, os que experimentaram as agruras do remorso ou do arrependimento sabem muito bem como o nosso interior pode se transformar num ardente e verdadeiro inferno.

Mas as recordações após aquela viagem só traziam desejo de falar de coisas boas que, embora passadas, estão bem vivas na lembrança. Dizer dos passarinhos a cantar no parque em frente às manhãs orvalhadas que traziam do Lago di Garda réstias de um sol se esforçando para esquentar a brisa do outono.

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Lago di Garda (Itália)
Viviana Rishe/Roxana Obreja/Lotte de Jong
Ó Malcesine, os reflexos de tua beleza permanecerão nas águas deste lago tanto quanto para sempre na memória deste arquiteto metido a cronista, que tem como vício gostar de andar muito além de suas raízes. Mesmo que o sabor da volta se mantenha inigualável e reforçado ao rever de perto Tabatinga e Praia do Amor, maior ainda é o prazer de se sentir cidadão do mundo que apenas ama ver além, sem fronteiras nem barreiras.

Voltando aos encantos do Lago di Garda, que atraiu para suas margens belas cidades como Sirmione, Torbole, Limone, Saló, é em Malcesine que nossas lembranças se fincam com mais força. Impressiona a maestria com que souberam lhe deitar a arquitetura sobre o relevo enladeirado, cobrir de seixos suas ruas, decerto retirados do próprio entorno. São ladeiras e escadas que convergem suas dobras com incrível graça e harmonia, uma surpresa em cada esquina.

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Lago di Garda (Itália)
Fabian Kuhne/Roxana Obreja/Max Bohme
Nas janelas emolduradas sob frondosas guirlandas de bouganvilles, a natureza sorri junto com semblantes serenos e amáveis. Aconchegantes e toscas tabernas a vender azeite, pão e vinho, espinafre e ravioli, completam o habitat. É incrível como as idades se misturam à alegria, fora do tempo e das rugas, cabelos ora brancos de sabedoria, ora loiros nas cabecinhas serelepes que sobem e descem escadas e ladeiras, que como os rios desembocam no grande lago. Quiçá por isso aqui se diz "viver um século é tão comum como as árias de Rossini". E ao olhar as oliveiras de tantos jardins, nem de longe se duvida que a idade é sem limite.

O crepúsculo de Sirmione atrás não fica, com seu charme encantador. Ilhada na península do Garda, é outra pérola desta riviera abençoada que até a Maria Callas terminou por encantar. Quando outrora aqui esteve, não resistiu a tanta beleza e bem em cima de um monte fez de cá o seu refúgio. Ainda assim a desventura não a deixou enxergar que a felicidade está muito longe, bem acima dos reflexos de um lago. Embora certamente o canto dos pássaros ao redor de seu jardim, hoje parque com seu nome, muito houveram-na inspirado a nos palcos refletir o que vimos em Malcesine.

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Malceisne / Sirmione / Casa de Maria Callas (em cima, à dir.) (Itália)
Schorle/Curly Beard/Philipp Angerhofer-
Sempre bom é constatar que o homem é capaz de se organizar do jeito como se vive em Sirmione e Malcesine, e no íntimo perguntar como é possível que essas cidades funcionem assim tão perfeitas?... Sem um cisco na rua, um barulho sequer, ninguém ao léu, com a paz e o silêncio que só os sinos chamando à prece são capazes de completar. Uma harmonia que se estende enigmática, às vezes nostálgica no piar das gralhas e gaivotas a voar por cima do lago, à cata de trutas e piabas. No calmo andar dos que carregam um monte de anos de experiência e sabedoria, e que por isso, muitas vezes, aqui são levianamente discriminados.

Como admiro o conforto da velhice sábia! Daqueles que aprendem com os anos a curtir e ver a vida por cima do que dela aprenderam... Com o bom humor que leva um cronista como Carlos Romero a parar diante do banner iluminado com a foto da bela atriz Penélope Cruz, no saguão do Orly, em Paris, e observar: "Veja só, uma multidão costuma se espremer no Louvre para ver a pequena Mona Lisa, mas esse povo todo aqui do aeroporto passa totalmente insensível a uma beleza como essa...

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  1. JOSE MARIO ESPINOLA7/5/23 18:14

    Acabo de ler mais uma deliciosa crônica de viagens de Germano Romero. O autor as escreve como poesia fosse, em forma de prosa. Assim, nos brinda duplamente.
    Cumprimento Germano Romero pelo registro de sua enésima viagem, sempre muito interessante, onde ele capta o que há de mais belo em cada uma delas.

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    Respostas
    1. Meu amigo ZM, muito grato pela leitura e considerações. Sua sensibilidade para captar as impressões que tentei traduzir não nos surpreende, pois cientes somos de seu bom gosto e olhar apurado. Um abraço!

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  2. Anônimo8/5/23 00:43

    O seu olhar de cronista e arquiteto foi além das paisagens. Bravíssimo, Germaninho!👏👏👏👏

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  3. Anônimo8/5/23 06:39

    Belo texto, amigo Germano, digno de um escriba e um viajante com a sua sensibilidade de artista múltiplo. Parabéns. Gil.

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  4. 👏👏👏👏👏❤️❤️❤️❤️❤️🪡✂️🧵

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  5. Paisagem encantadora, texto maravilhoso, elaborado com a alma de poeta.

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