Era, sobretudo, pela via comum dos relatórios que a cúpula da empresa tomava conhecimento do que se passava nos canteiros de obra, das d...

O inspetor

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Era, sobretudo, pela via comum dos relatórios que a cúpula da empresa tomava conhecimento do que se passava nos canteiros de obra, das dificuldades, dos resultados, da eficiência – ou não, dos responsáveis. No caso aqui, dada a distância, a rota pouco usual de acesso, a situação normalmente ruim das estradas, a regra não tinha exceção e o controle se dava unicamente através dos relatórios, habitualmente parcimoniosos, produzidos pelo seu inspetor geral, e como se verá, exatamente por essa parcimônia.

O nome desse inspetor: Horácio. Dr. Horácio era, aliás, como os subalternos o chamavam, embora não fosse doutor coisa nenhuma, não tivesse posto jamais os pés numa universidade. Este homem que percorria as obras com aquele seu jeito corretamente cínico de gracejador discreto,
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Celyn Kang
que para algum incauto estivesse sugerindo um clima possível de certa e velada descontração, possuidor que era daquela inaceitável timidez dos tigres de bengala, com um modo meio desinteressado de fazer perguntas surgidas inopinadas e aparentemente triviais, meio que fora de propósito, quase bobas, e que não passassem. Aliás, de pura gentílica convencional, senão desnecessárias, fossem ainda um mero tique de sociabilidade, quando, ademais, fazê-las seria parte inevitável de um programa compreensivelmente maçante da rotina burocrática, a que todos – inclusive ele - estão sujeitos.

Uma vez, porém, feito isso – e diante de qualquer fato que viesse implicar um aumento de custos, um dano material para a empresa (um maquinismo quebrado, por exemplo), etc, seria inevitável a suspeita de negligência. Em se tratando de Horácio não se poderá aqui falar em suspeita, já que teria ele certeza imediata de que alguém era culpado pela “falha”, além do que, não estava ali para simplesmente ficar contabilizando prejuízos, mas para apontar culpados. Neste ponto cumpria-lhe apenas descobrir o responsável pela “merda”, e em seguida indicar seu nome num relatório.

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Engin Akyurt
Um operador, um simples peão, quem quer que fosse, e caso não identificasse tal sujeito, este até poderia ficar relegado à condição algo misteriosa de algum irresponsável indireto e anônimo por aquilo, desde que, em contrapartida, encontrasse Horácio um responsável direto e com nome próprio, ou seja, no próximo relatório a conta cairia direitinho nas costas do engenheiro, do chefe da obra. Mas enquanto houvesse um suspeito direito, este seria chamado buscado e interrogado. Ei-lo no que espera a resposta olhando agora de frente para o interlocutor, com uns olhos de indisfarçável, surpreendente avidez e argúcia (o clássico: te peguei) e toda a expressão do rosto aí repentinamente colocada ao serviço do desdém e da incredulidade. Então se transformava. Era outro.

Em momentos assim seus olhos adquiriam movimentação súbita e extremamente focada, o olhar tinha a intensidade do escândalo, movendo-se (enquanto as pálpebras se mantinham congeladas pelo retesamento) entre os olhos e a boca do entrevistado, e nesta iam de um canto a outro, como seria possível imaginar-se a um algoz do Santo Ofício esperando surpreender o pecado um instante antes que salte da boca de algum infeliz confessor.

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Tumisu
Dissimulação seguida de desfaçatez irreprimível, esse homem inacessível à mais nominal das virtudes do gênero – a generosidade —, chegava nesses rompantes a lembrar um ator perdido no papel a representar. O que o fazia tentar, na sequência de uma mesma cena, duas interpretações possíveis – e extremas – para o mesmo personagem. E é razoável supor, não tinha muita consciência da mudança nada sutil de que era protagonista, uma vez que acabava pondo o entrevistado em imediato estado de alerta: instintivamente alertado do perigo, o pobre homem passava a dar-lhe respostas prontas e firmes a respeito dos procedimentos mais corriqueiros que fossem de sua conta, e até dos outros.

Como (exagerando) num filme sobre o cerco de Constantinopla, em que uma sentinela responde ao próprio patriarca que vistoria as muralhas de sua fortaleza sitiada: Não há nada, senhor, está tudo sob controle.

Ocorre que Eleutério Gomides o conhecia, e de longa data. Tributava-lhe, aliás, o desfavor de uma carreira profissional estacionada há anos, e não se deixaria apanhar outra vez. Mais que Eleutério, porém, os mandachuvas da companhia conheciam a profunda aversão que seu inspetor votava a qualquer plano de ascensão profissional, da parte de quem quer que fosse – e conquanto pior se por méritos próprios. Ainda pior quando, num primeiro momento, e a depender de uma recomendação favorável e sua, a promoção pudesse significar um deslocamento do duro campo de obra para o conforto dos escritórios. Horácio nunca tivera um. Seu trabalho era vagar como uma alma penada de escritórios alheios para as obras, e destas para aqueles.

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Celyn Kang
A mesquinhez o havia ditado um sentimento de apreensão para com todos que demonstrassem a mais leve capacidade para produzir uma nova versão daquela que fora sua própria e vitoriosa trajetória, de qualquer outro modo repetindo seus passos na vida da empresa. Pois era como se os visse já no seu encalço, ameaçando alcançá-lo, sobrepujá-lo, por fim.

Mas a verdade é que rigor preventivo, excessivas medidas e cuidados, quando tomados solitariamente contra uma, dentre várias outras possibilidades do que pode ou não vir a acontecer, tem como resultado conferir àquela um vulto que talvez não merecesse. Contribui para que vá deixando de ser o que era: uma vaga, remota possibilidade para começar a ganhar contornos que serão mais e mais nítidos no horizonte, numa escalada que não cessará antes de atingir aquele status de algo iminente, inevitável, e que apenas estaria sendo protelado.

É assim que um fato vai se antecipando, pois se não houvesse uma brecha para ele, e, mais tarde se dirá, rigorosa necessidade de sua materialização, não haveria também razão para tanto alardeá-lo.

É o caso, pode-se dizer, de um homem que após vestir terno e pôr chapéu, passa a admitir uso de sobretudo, e, porque não, de uma capa. Estes, por sua vez anunciam naturalmente um guarda chuva, sendo torrencialmente impossível que depois de tal arrumação uma chuva não caia.

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ds_30
Mas uma parte dos temores de Horácio tinha certa procedência.

Um estratagema administrativo, sem dúvida, perverso, ou irônico, o colocava num contínuo dilema profissional: seria inevitável chegar o momento em que um relatório seu estaria a um passo de provocar reviravolta na hierarquia do trabalho. Esta com consequências indesejáveis para si, ou seja: relatar em adjetivos favoráveis o bom andamento, a bem sucedida execução de alguma obra era não apenas reconhecer capacidade no engenheiro que a tocava – e em relação ao Dr. Eleutério, a coisa andava especialmente complicada, já que este vinha dando provas continuadas de tal capacidade, e, sobejamente nessa última obra, também significava ajudar ao homem em uma possível promoção, e consequente subida para os escritórios. Ora, com isso Horácio estaria ganhando novo superior, ou alguém que, muito embora um colega de nível quase igual ao seu, encontrar-se-ia, no entanto, e doravante, fora daquele seu raio de inspeção.

Este era o principal motivo pelo qual, em nome de um rigoroso zelotismo profissional, Horácio manifestava uma contínua sede de erros, negligências, irresponsabilidades, etc.. pecados e pecadilhos comuns que farejava por toda parte, sempre na defesa dos próprios interesses, e que ele, habilmente, fazia confundir com os da empresa.

Mas acontece que era graças a um inspetor de obras como ele que a direção da empresa podia dar-se ao luxo de eventualmente praticar algum gesto de reconhecimento, ou gratidão – e aí inequívoca –, na hora de promover alguém dentro do quadro funcional: sentia-se tranquila
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ds_30
quanto ao acerto da escolha (embora em ocasiões assim, ao comunicar ao beneficiado a decisão, quase sempre fingisse o Dr. Alex estar sendo movido por receosa generosidade), uma vez que, para isto, não havia como se enganar, estaria solidamente amparada na tradução, non (nunquam) ipsi letteri, que de há muito tempo aprendera a fazer dos textos desse Horácio às avessas do seu homônimo romano: àquela altura não tinha dúvidas (a diretoria) de que o uso dos adjetivos satisfatório e bom, termos comuns de que até então se valera Horácio nas sucessivas avaliações feitas sobre a empreitada encabeçada por Eleutério, eram, respectivamente, eufemismos da excelência e da perfeição – é que cioso de seu próprio cargo, prudentemente não ousara o inspetor lançar mão de termos menores, termos que, uns poucos pontos abaixo naquela escala de avaliação, resultariam para entendimento final e prático dos diretores em algo de fato correspondente àqueles satisfatório e bom. O que absolutamente não correspondia aos surpreendentes resultados que foram sendo colhidos por Eleutério, ainda mais quando se sabia que tais resultados foram colhidos sob recomendação de tempo bastante apertada.

Por sua vez, o que Eleutério Gomides não sabia (enquanto no pico de efervescência do trabalho as máquinas atroavam pelas ruas, quando mal se podia ouvir e de modo nenhum entender o que gritavam os homens, vozes abafadas pela catatonia ensurdecedora dos guinchos que mais do que roncavam na frente dos buracos, naquele jogo feroz e impaciente de acertar-lhes com a extremidade de base dos postes, suspensos então por cabos, a balançarem perigosamente no ar), é que as minudentes justificativas que dava em suas solicitações quase diárias à companhia, ali já nem eram discutidas, nem sequer havia mais a necessidade de que alguém lesse, na íntegra a relação dos pedidos – a não ser na hora de conferir os despachos.

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