Em 1975, o ex-presidente Juscelino Kubitschek, então cassado e perseguido pelos militares de 1964, botou na cabeça de se candidatar a uma cadeira da Academia Brasileira de Letras, na vaga do escritor Ivan Lins. Anunciou sua intenção a Josué Montello na manhã do dia 17 de junho daquele ano e assim justificou a inesperada decisão: “… Estou morrendo de tédio, sem saber o que fazer de mim. Não sou banqueiro, e dirijo um banco. Não sou comerciante, e tenho de comprar e vender. Sou político, e a política me mandou embora. A eleição que está no meu caminho, agora, é a da Academia”. Vejam só. Depois foi esclarecido que Jorge Amado, ao vê-lo empossado na Academia Mineira de Letras, foi quem semeou a ideia da ABL no coração de JK.
Juscelino, como bem disse o amigo Montello, “se não era um escritor, era um homem de letras, no gosto dos livros, no discernimento dos valores literários”. Na verdade, era mais do que isso: era um estadista, dos maiores de nossa história, quisessem ou não os adversários pigmeus. Era um nome que já estava inscrito e consagrado nos livros de História, e que já pertencia, apesar de ainda vivo, à mais ilustre posteridade brasileira. Não precisava da Academia para nada, em termos de glória mundana, mas, ao contrário, a instituição é que engrandecer-se-ia com a sua eleição. Nessa condição, como inequívoco “notável” que era, estava devidamente legitimada sua candidatura a uma entidade que, desde a fundação, sob a inspiração da Academia Francesa, não se restringiu aos literatos, abrindo-se sábia e generosamente aos grandes da nacionalidade, independentemente da área de atuação.
Montello advertiu o amigo, como era de seu dever: “Há quem diga que a eleição para a Academia é mais difícil do que a eleição para a Presidência da República”. Mas o estimulou logo em seguida, já dando como certa sua vitória: “Sua posse vai ser uma apoteose, presidente. Prepare-se. Terá o valor da posse de Alcântara Machado, depois da Revolução Paulista de 1932. A consagração da normalidade política. A resposta da Academia, em nome do país, às injustiças que lhe fizeram”. Sim, era isso mesmo. A eleição de JK seria uma oportunidade de a sociedade civil brasileira, através da Academia, reparar os males arbitrariamente impostos ao político pelos militares tementes de sua popularidade ou sequiosos de vingança contra ele, pelas mais diversas razões. Portanto, uma ocasião cívica única para todos: Juscelino, a Academia e os acadêmicos.
Mas logo as nuvens escuras apareceram no céu da candidatura de JK. Em conversa com Josué Montello, logo após a oficialização da inscrição do candidato, o acadêmico Osvaldo Orico confessou-lhe seu temor: “Estou sentindo no ar uma conspiração contra a candidatura do Juscelino. Conspiração que vem de cima. E a que vários de nossos colegas são sensíveis”. E houve mesmo tal trama contra a pretensão de JK. E há quem diga que teria sido liderada pelo general Golbery do Couto e Silva, então muito influente e poderoso, cheio de mágoas por ter sido anteriormente preterido pelo ex-presidente em promoção em sua carreira militar. A Academia, por sua vez, pleiteara junto à Caixa Econômica Federal um vultoso empréstimo para a construção de imenso edifício em terreno situado ao lado de sua sede. Esse prédio, afinal erguido com o dinheiro emprestado pela CEF, daria, como de fato deu, independência financeira à Casa de Machado de Assis, até então sempre carente de recursos materiais, como suas congêneres em geral. Sem falar nos interesses pessoais de diversos acadêmicos vinculados, de uma forma ou de outra, aos poderosos do dia e portanto potencialmente dóceis aos seus apelos. Como se vê, uma alta muralha de oposição ergueu-se rapidamente em objeção à candidatura que, inicialmente, julgava-se destinada ao êxito.
Inscreveu-se para concorrer com Juscelino o escritor goiano Bernardo Élis, também perseguido pelos militares de 64. Respeitado literariamente, mas pouco conhecido pelo grande público, Élis teria sido, segundo Montello, talvez estimulado pelo general Golbery, como uma estratégia para derrotar JK por meio de outro candidato também adversário do governo, pelo menos supostamente. O fato é que Élis assumiu sua candidatura, e por ela trabalharam ardentemente os donos do poder e os acadêmicos a eles ligados. Faltou-lhe grandeza para abrir caminho em favor de Juscelino, merecedor, mais que quaisquer outros, daquela justa vitória compensadora. Se verdadeira a versão que dava Élis como instrumento maléfico de Golbery, vê-se que ele ter-se-ia dobrado, apesar de perseguido, à vontade de seus algozes, em troca da cadeira na ABL.
Resultado da eleição: no primeiro escrutínio, Juscelino teve 19 votos, Bernardo Élis, também 19 votos, e um voto em branco. Não houve eleito. No segundo escrutínio, Juscelino teve mais uma vez 19 votos, Élis teve 18, e se repete um voto em branco. Ninguém foi eleito e se verifica que um acadêmico deixou de votar. Vai-se para o terceiro escrutínio: Juscelino tem 18 votos, Bernardo Élis sobe para 20 e há mais uma vez um voto em branco. O escritor goiano é finalmente eleito, para desolação dos seguidores do ex-presidente. Montello disse à sua esposa, já no hall do Petit Trianon: “Cedo, o Bernardo Élis vai arrepender-se de sua vitória”. Mas não. Que eu saiba, ele nunca se arrependeu de nada. Já Juscelino é que, altaneiro, perdoou aos que lhe viraram as costas. Estivesse no poder ou com sua mera expectativa, teria sido eleito tranquilamente, como o foi Getúlio Vargas, muito menos das letras que o mineiro, mas então dono da caneta mais poderosa do país. Até alteraram o Regimento da Casa para facilitar-lhe a entrada. O general Aurélio de Lyra Tavares, um dos três que governaram temporariamente o país quando da doença do presidente Costa e Silva, também trocou sua farda de militar pelo fardão de acadêmico com a melhor das credenciais literárias: o poder.
Mas o tempo passou. O ex-presidente Juscelino seguiu adiante, de cabeça erguida. A morte levou-o inesperadamente num desastre automobilístico até hoje controverso. Seu nome cada vez mais cresceu na História. Já Bernardo Élis ninguém lembra quem foi, assim como muitos dos seus oportunistas eleitores. Seu controverso ingresso na ABL não lhe trouxe nenhuma glória. Pelo contrário. O esquecimento parece ter sido a recompensa por sua discutível imortalidade.