Nutri, durante algum tempo, uma espécie de ranço preconceituoso com relação àqueles que acumulavam as funções de poeta, de artista plástico, de dramaturgo etc. Quem assim procedia, parecia-me querer açambarcar o mundo com as pernas. E que, não podendo fazê-lo, mostrava-se negligente, incapaz de dar conta do recado.
Àquela época eu sequer cogitava que as manifestações artísticas já não mais ocupavam compartimentos estanques, mas antes se fundiam e se inter-relacionavam para formarem um todo uno e indissolúvel. Quer dizer, desde o Romantismo, início da dissolução dos gêneros literários, as artes intercambiavam características represadas no espaço anteriormente claustrofóbico e engessado dos seus próprios domínios. A partir de então, pouco a pouco, cumpria ao artista multimídia transitar com desenvoltura no âmbito das várias atividades que ele acumulava em regime de tempo integral e dedicação exclusiva. Alguns – raros, é verdade – acumulam essas funções com brilhantismo e conhecimento de causa, a exemplo de W. J. Solha e Josafá de Orós.
Pois bem. Esse Josafá de Orós*, que é de Orós, Ceará, mas que reside em Campina Grande, na Rainha da Borborema, é um excelente artista plástico e um competente poeta. No poema “Litania das palavras”, que me enviou, convivem o vate e o xilógrafo, esse ultimo através do artesanato, do labor, da pertinácia e da perspicácia com que escolhe cada palavra para compor a estrutura desse longo poema monotemático. E mais: embora seja um poema metalingüístico, o eu-lírico não é daqueles que se perdem em firulas estéreis, contraproducentes, no mero jogo de palavra-puxa-palavra, para erigir os arabescos do nada. A metalinguagem, aqui, não celebra só a linguagem, mas a vida que pulsa dentro e fora dela. Diferente, por conseguinte, dos que chegam a descontextualizar e a distorcer a máxima de Mallarmé segundo a qual “Poemas não são feitos com ideias, mas com palavras”. Não preciso dizer que poemas são feitos com ideias que se elaboram a partir da linguagem, pois, mesmo os bons poetas líricos, os que criam sob a égide do sentimento, da emoção, não descuram ou menosprezam a palavra, pedra de toque de todo e qualquer texto que se preze. Sob esse aspecto, Manuel Bandeira e Mario Quintana, poetas quase xifópagos, quase siameses – na medida em que fundem a tradição com a renovação –, não me deixam mentir.
Quando o artista atua em várias frentes, acumulando as funções de xilógrafo, poeta, dramaturgo etc., ele outra coisa não faz senão conjugar esforços no sentido de encontrar a unidade perdida, fragmentada, num mundo cada vez mais carente de completude. Aliás, o próprio Josafá, discorrendo a propósito de sua condição de artista eclético, observa: “Apenas fazemos e fazemos para existir”. Quer dizer: a vida – como diria Fernando Pessoa –, por si só, não é suficiente. Daí o desdobramento de Fernando Pessoa ortônimo, ele-mesmo, em heterônimos como Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro e muitos outros, cada qual com suas características, especificidades, idiossincrasias e personalidades próprias.
Também o desdobramento de Josafá de Orós em outras esferas da práxis artística corresponde – guardadas as devidas proporções – à adoção de heterônimos, recurso através do qual ele procura tornar mais suportável o fardo da existência.
Enfim, eis o Josafá de Orós que eu sei: poeta e xilógrafo, xilógrafo e poeta, um nutrindo o outro, abastecendo-se reciprocamente, para o gáudio do seu público diversificado e uno.
*Josafá de Orós comparece com três poemas no livro “Engenho arretado” – poesia paraibana do século XXI, Patuá Editora, São Paulo, 2022, organizado por Amador Ribeiro Neto.