Simpatizo com ela faz tempo. Quando a conheci, foi do ponto de vista do direito que primeiro a analisei, mesmo que superficialmente. A...

Essa moça chamada Antígona

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Simpatizo com ela faz tempo. Quando a conheci, foi do ponto de vista do direito que primeiro a analisei, mesmo que superficialmente. Agradou-me sua postura contestadora frente ao poder e à lei, em nome de princípios superiores, pelo menos para ela. Admirei sua coragem de assumir risco de morte, quando poderia ter se acovardado para seguir sua vida, como fazem tantos, como fazemos nós, pobres mortais pouco heroicos. Com o tempo, fui depois vendo-a com outros olhos, a partir de leituras outras, sempre de forma autodidata, sem método nem orientação, como tem sido, o mais das vezes, minha trajetória de simples leitor. E continuei a gostar dessa moça, ao ponto de considerá-la hoje uma de minhas personagens preferidas da tragédia grega, o que explica este sumário texto com ares apologéticos.

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Édipo e a Esfinge Gustave Moreau
O leitor conhece, em linhas gerais, sua história, sua trágica história, contada por Sófocles, o dramaturgo grego. Antígona era filha de Édipo e de Jocasta. Incestuosa, portanto, já que seu pai era simplesmente filho da dita Jocasta, a despeito da ignorância de ambos sobre esse parentesco, no momento de sua concepção. E era irmã de Polinices, morto em batalha. Tinha outro irmão, também morto lutando, mas este não vem ao caso aqui. Uma família, pois, condenada à destruição por conta da desobediência aos deuses por parte de Laios e de Jocasta. Eles foram advertidos para não ter filhos e no entanto tiveram: Édipo, o futuro pai de Antígona, que, sem saber, mata Laios e se casa com a mãe. História complicada, mas muito humana, a despeito das divindades envolvidas.

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Édipo amaldiçoando Polinices Henry Fuseli
A tradição grega à época dispunha que os mortos deveriam ser sepultados com todos os rituais pertinentes, sob pena de a respectiva alma permanecer vagando, sem sossego. Todavia, o rei Creonte, tio de Antígona e de Polinices, determina que o corpo deste permaneça insepulto no campo, para ser devorado pelos bichos e servir de exemplo. E mais: que quem ousasse desobedecer a ordem real seria punido com a morte. Antígona não admite deixar o corpo do irmão sem sepultura e decide honrar os costumes da cidade, enfrentando, em consequência, o poder constituído, seu tio Creonte, o rei. E aqui temos um dos eixos centrais da tragédia: o confronto entre legalidade e tradição ou, numa linguagem jurídica, entre positivismo e direito natural. Em outras palavras, entre a lei (o Poder, o Estado) e valores comunitários e sociais tidos como anteriores e superiores àquela pelos cidadãos (ou pelo menos por alguns destes).

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Creonte condena Antígona Giuseppe Diotti
Inicialmente, de cara, destaca-se logo a coragem de Antígona em desafiar a decisão do rei, sob ameaça explícita de morte. Sendo ela mulher e sendo a sociedade grega da época o que era, mais ainda avulta essa coragem, para admiração nossa. Como disse, ela poderia perfeitamente, mesmo sofrendo e sob íntimo protesto, ter se resignado ao cumprimento da lei cruel. É o que a maioria das pessoas, em idênticas circunstâncias, talvez tivesse feito. A iniquidade do edito real não a atingiria, salvo indiretamente, se a ele Antígona se curvasse. Mas não. Ela resistiu e assumiu livremente o ônus do heroísmo e do martírio, para dar repouso à alma do irmão. Mulher admirável, sob todos os aspectos.

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Antígona conduz Édipo Aleksander Kokular
Como disse, Édipo, pai de Antígona, era filho de Jocasta, sua mãe (dele). Casara-se com esta após ter matado seu pai, o rei Laios, de Tebas. cumprindo assim a profecia do oráculo de Delfos. Antígona era portanto filha do incesto, assim como Polinices. Constituíam, do ponto de vista das tradições ancestrais, vidas amaldiçoadas pelo “pecado”, que só extinguir-se-ia com a morte de todos. Este fato também contribuiu certamente para que Antígona valorizasse pouco sua existência quando decidiu enterrar seu irmão com as próprias mãos, à revelia da ameaça do rei. Mas ainda assim isto não diminui sua coragem e sua alta dignidade em optar por honrar as consagradas tradições ao invés da discutível ordem do dia.

Como bem destacou Luiz Felipe Pondé, a tragédia de Antígona representa o conflito entre a lei dos homens (Creonte) e a lei dos deuses (as tradições da cidade e da família). Há nisso, sem dúvida, um tanto de beleza e outro tanto de perigo, reconheço. Beleza no enfrentamento do poder, principalmente quando este se apresenta iníquo; perigo quando o não acatamento das normas legais, a critério de valores individuais, possa gerar instabilidade social, com risco para a ordem e a paz da sociedade. Pois o que seria daquelas normas, sobre as quais se funda a vida comunitária, se a cada qual se reconhecer o direito de violá-las com base em valores ou opiniões pessoais? Grave questão.

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Édipo e a Esfinge Ingres
Em situações extremas, é claro que se impõe o direito de revolta por parte dos cidadãos – e daí vêm as revoluções. Mas no dia a dia não é possível, sabemos. Com frequência, o cidadão cumpre a contragosto a lei ou a decisão judicial/governamental com que não concorda e vai expressar seu descontentamento pelos meios que a democracia e o Estado de Direito põem à sua disposição. É assim que a vida social dita civilizada funciona, a despeito de suas imperfeições.

No caso de Antígona, a questão era menos da sociedade que dela mesma. Ela entendeu que era seu dever pessoal sepultar Polinices, a fim de que sua alma tivesse descanso. Dever fraternal e familiar, para ela superior ao dever de obedecer ao rei, naquela questão particular. Correu, assim, deliberadamente os riscos envolvidos na desobediência e corajosamente enfrentou a morte, morte esta que convenientemente também haveria de extinguir o pecado do incesto que manchara sua família amaldiçoada.

Como se vê, a história de Antígona é rica e dá margem a muitas reflexões e discussões. Seu lugar na cultura ocidental é imenso. Creonte foi rei, mas diante dela virou mero coadjuvante, apequenou-se. Por essa e por outras é que sempre tive uma quedinha por ela, mártir dos valores que, vez em quando, se alteiam sobre tudo o mais, merecendo até que sacrifiquemos a vida por eles. É desses valores que nos lembra Antígona e é por isto que me lembro dela.

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