Um chiado longo como se ali por perto alguém estivesse a rasgar um pedaço grande de tecido. Em seguida, um tique-tique de igual duração...

Ecos do passado

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Um chiado longo como se ali por perto alguém estivesse a rasgar um pedaço grande de tecido. Em seguida, um tique-tique de igual duração, à semelhança da tesoura manejada pela costureira a quem as donas de casa encomendavam vestidos, saias e camisas.

Jacira, a ajudante da minha mãe nos tratos da casa, tomava a coisa para si e gritava da porta da cozinha para o céu de carvão: “Te esconjuro”... E logo fazia o sinal da cruz da cabeça para o peito e daí para os dois ombros. Não lhe bastaria a cruzinha de poucos centímetros, aquela que padres, frades e bispos ainda fazem com o polegar na testa dos recém-nascidos durante o batismo e na dos católicos em geral, nas Quartas-Feiras de Cinzas.
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L. Sanchez
Em momento de tamanha gravidade – a ela talvez assim parecesse – a encrenca somente poderia ser resolvida com a esconjuração em voz alta e a cruz de meio tronco.

O que assustava a moça? A coruja-de-igreja, ou coruja-das-torres, como queiram, a ave a quem se atribuía o encargo de avisar a crédulos e incrédulos a proximidade da morte. O rasgar do tecido e os cortes da tesoura prediziam a confecção da mortalha, a última vestimenta dos humanos.

Os pernoites na fazenda de uma tia me permitiam ouvir o canto do bacurau. Foi quando atinei que bacurau era uma ave e não o trem das madrugadas por mim escutado do quarto onde eu e meus irmãos nos aninhávamos sob a proteção de pai e mãe. O comboio desse horário ganhou o nome do bicho em razão de copiar-lhe os modos e hábitos noturnos. Ambos assoviavam, corriam e voavam quando o resto do mundo tentava dormir.

Ouvi a ema sem medo, porquanto não a supunha agourenta no tronco da jurema, conforme retratada por João do Vale, o compositor, e Jackson, o intérprete. Eu ainda não tinha idade para as morenas e os beijos por eles perdidos em decorrência do canto azarento.

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B. Dupont
Mas era velho o suficiente para, acordado pelo búzio, correr à beira do rio a fim de ver as cabeças de cheia. Vinham se arrastando como cobra e, tanto quanto esta, dissimuladas, enganosas. Aqueles ticos d’água logo engrossavam para alargar as margens e encobrir o leito arenoso, de canto a canto. Meu pai acompanhava meus passos e comigo silenciava ante o som triste como o apito de um navio em suas despedidas do porto.

Contei aos meus três filhos e ainda conto ao neto que os búzios serviam à proteção dos ribeirinhos, de suas hortas e seus animais. Ao ouvi-lo até princípios dos anos de 1970, aquelas famílias tratavam de colher o que podiam e desamarrar cavalos, jumentos, cabras e vacas antes de o aguaceiro carregar tudo.
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Manuel MV
Tarefa coletiva, compartilhada, a não ser pelos sopradores de búzio em benefício dos que ainda dormiam à beira do mesmo leito aonde as águas chegariam, quilômetros depois, com a pressa dos bacuraus.

Tento trazer aos que de mim descendem as coisas, os sons e os enredos que me acalentaram. E nisso incluo os contos da Carochinha ouvidos da minha avó materna. Meu neto de dez anos ainda se afasta dos meus beliscões na bochecha ao fim da história da viuvez da Dona Baratinha, exatamente, como eu e meus irmãos nos afastávamos da Vó Amélia.

Aconteceu assim. Apesar de muito feia, Dona Baratinha conquistou o coração de Dom Ratinho, não se sabe se em razão da fortuna que ela possuía. Finda a cerimônia do casamento e com uma fome de leão, o danado caiu na panela fervente ao tentar provar da melhor feijoada que lhe ofereciam a sorte e o destino.

Desolada, Dona Baratinha se pôs em pranto convulso na janela. E lá veio o Passarinho a catar pedrinhas na estrada.

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CC0

Pronto, havia chegado o momento de correr para longe como corríamos eu e meus irmãos dos beliscões da nossa avó e como, ao fim dessa história, de mim se afastavam meus filhos, entre eles o primogênito, aquele que me deu o neto hoje também em fuga, às gargalhadas, da malvadeza do avô. Três gerações, desde o búzio ao computador, com a mesmíssima reação.

Revi, há pouco, enternecido, o encantamento de um menino de 12 anos com as engrenagens de um velho projetor da marca Pathé manejado pelo pai do seu pai. Aquelas carretilhas, as lentes, a lâmpada de arco voltaico, o entra e sai de fotogramas impressos numa fita de 16 milímetros o hipnotizavam. “Que massa, Vovozinho” – foi a expressão de surpresa capturada por Dácia Ibiapina para o premiado “Cinema Engenho”, o documentário no qual ela retrata a figura impressionante de José Ribeiro, o cinemeiro a quem sucessivas gerações de conterrâneos devem o amor pela Sétima Arte, assim tida e havida. Nenhum joguinho eletrônico, nenhum avanço nessa área, surpreenderia tanto aquele menino. Afinal, acostumara-se desde o berço com os milagres da computação. Já era de nascença habitante de um mundo operado pelo sistema de toques na tela.


Revi a cena com a quantidade de lágrimas que me fez verter “Cinema Paradiso”, o belo filme do italiano Giuseppe Tornatore, uma das mais tocantes declarações de amor pelo cinema.

Quando aquela velha coruja sobrevoar meu teto, partirei desta para melhor convicto de que fiz o que pude para dar eco aos sons, aos sabores e cores do passado. Assim ajo a fim de que não se percam, por completo, a alma e a identidade de um povo: este que todos compomos com nosso sotaque, nossos enredos e nossos costumes. Essas coisas não podem morrer.


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  1. Ângela Bezerra de Castro26/5/23 11:13

    Que linda memória. Nos transporta à infância, como num voo de pássaro. Felicidade de Miguel, ter você como avô.

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  2. Lindas recordações, era assim mesmo q nós vivíamos
    Ah......q saudade

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