Li no Le Figaro da terça-feira passada, dia 09 de maio, arquivo gentilmente repassado pelo meu amigo Germano Romero, uma matéria interessante sobre a entrada de novas palavras, para a edição de 2024 do Petit Larousse illustré, o dicionário mais popular da França. Foram acolhidas 150 novas palavras e sentidos, bem como o nome de 40 personalidades. A matéria inclui uma entrevista bastante esclarecedora dos critérios de verbetação, com o linguista Bernard Cerquiglini, conselheiro científico do dicionário.
A primeira observação digna de referência é que as palavras passam por uma espécie de eleição, para que possam constar no Larousse, “une photographie du français vivant, actuel et donc courant” (uma fotografia do francês vivo, atual e, portanto, corrente). Durante um ano, os lexicógrafos preparam uma lista com as novidades do vocabulário usual da população, para depois fazer reuniões depuradoras, até chegar a 150 palavras, que deverão entrar no Larousse, se o uso permanecer constante. Constata-se por esta declaração o óbvio, que muitas pessoas desconhecem e não querem admitir: o que determina o léxico de uma língua é o uso coletivo, não o uso particular, conforme reconhece Bernard Cerquiglini: “Les mots élus doivent apparaître dans les conversations, à l’écrit, ne pas être réservés à un métier ou à une classe d’âge” (As palavras eleitas devem aparecer nas conversas, na escrita, não estar restritas a uma profissão ou a uma classe etária).
Obviamente que o uso reflete uma criatividade da língua – qualquer língua, diga-se de passagem –, cujo léxico não para de crescer, seja pelo desenvolvimento normal de uma sociedade, com novas profissões aparecendo, seja pela tecnologia, seja pela grande movimentação nas redes sociais, que permitem, por exemplo, a verbetação de termos como youtuber ou instagrammable (instagramável). Não só o desenvolvimento e o que é bom contribuem para o crescimento do léxico. O que é danoso à sociedade também dá a sua contribuição com termos como cybercriminalité (cibercriminalidade), europhobe (eurófobo), infodémie (infodemia, a pandemia da informatização) e covidé (acometido pela COVID).
No que diz respeito às palavras de origem estrangeira, desde que elas sejam de uso comum, foram incorporadas. É o caso de mochi (bolinho de arroz esférico, feito de uma pasta ligada de arroz, geralmente aromatizado, especialidade japonesa), que não teria como ser traduzido em uma única palavra. O coreano contribuiu com bibimpap (prato composto de arroz, de legumes salteados e de carne, geralmente com um ovo sobre o prato, e condimentado com pimenta). Como a comunidade asiática na França é grande, o bolinho e o “arroz misturado”, significado da palavra coreana bibimpap, passaram a ser muito populares, justificando a sua inclusão no dicionário.
No caso das palavras inglesas, mesmo com a vigilância contra o franglês – termos em inglês, mas pronunciados à moda francesa, como sói acontecer... –, elas foram acrescidas ao dicionário e, quando há uma tradução plausível na língua francesa, faz-se uma advertência no verbete como “Anglicismo desaconselhado” (Anglicisme déconseillé). É o caso de flex office, para o qual se dá o equivalente francês bureau nomade (escritório nômade, itinerante). Até o famoso ghost writer (escritor fantasma), tem como equivalente prête-plume (o que empresta a pluma). Seria mais condizente, acredito, o que aluga a pluma...
O importante, diz Bernard Cerquiglini, é não se deixar levar pelo modismo. Ele afirma que “os lexicógrafos têm um ‘nariz’, como os perfumistas: a prática constante da língua faz que se sinta o odor do que é uma palavra da moda” (Les lexicographes ont un “nez”, comme les parfumeurs: la pratique constante de la langue fait qu’on sent ce qu’est un mot de mode). Em muitos casos, a palavra tem que esperar mais de um ano, para que se veja se o seu uso é coletivo ou se se trata apenas de um modismo. Foi o que aconteceu com féminicide, conforme diz Cerquiligni. O termo foi recusado por mais de um ano, por lhe faltar clareza de sentido, até que a sua “perenidade” fosse constatada, pois não havia um consenso no sentido de se saber se a morte de uma mulher ocorria por ela ser mulher, por ela pertencer ao gênero feminino ou se o crime tinha como vítima uma mulher (Tuait-on une femme en tant que femme, en tant qu’appartenant au genre féminin, ou était-ce un crime dont la victime était une femme?).
O que me pareceu mais relevante nesta reportagem é que o linguista Bernard Cerquiligni deixa claro a todos os leitores que o uso (quantas vezes ainda vamos falar disso até que entendam?) é quem comanda as mudanças da língua, tendo em vista que as aquisições do léxico são muito mais rápidas, instantâneas, às vezes, por se tratar de palavras que podem ser criadas ou adotadas, sem que se afete a estrutura da língua. Por outro lado, vê-se que não se pode proibir que as pessoas falem como queiram ou que inventem o que queiram. Para entrar na língua, o que significa pertence ao sistema, no entanto, as palavras não podem estar presas a modismos, a ativismos, ou fazer parte exclusiva de grupos ou de faixas etárias. O franglês, de que falamos alguns parágrafos acima, não foi adiante na sua proibição e multa por seu uso, como se deu no início da ideia, por volta dos anos 80. Não se pode proibir a linguagem, como não se deve impor uma linguagem, qualquer que seja a desculpa. A língua não funciona por decretos, pelo queremismo de alguns ou pelas ideias nada democráticas de certos grupos. A língua funcionará coletivamente ou, então, não funcionará. Quanto mais fragmentação, menos coletividade e compreensão, e, para a sua sobrevivência, a língua exige critérios que permitam o seu entendimento por todas as gerações que a usam e a estudam.
Precisamos nos conscientizar de que mesmo sendo o estudo e discussão do desenvolvimento da língua uma questão para os especialistas, que estão em constante processo de melhor compreendê-la, ainda assim, não se pode proibir que as pessoas expressem a suas ideias sobre ela. Todos têm direito a expressão, ainda que ela fuja ao padrão culto, normatizado pela gramática ou ratificado pelo dicionário. O que não pode acontecer é a imposição a todos de um modo de falar por motivos estranhos ao sistema linguístico. Muito menos pode acontecer de se desejar a proscrição de palavras, com a desculpa de que elas são, de algum modo, ofensivas a alguém, em algum momento. Eis a cereja do bolo de toda esta conversa. Mais do que o critério rigoroso da verbetação, chamou-me a atenção o fato de que para dar entrada a novas palavras, nenhuma palavra sairá do dicionário. As novas serão acomodadas, junto daquelas que já fazem parte da língua, independente de estarem sendo usadas ou não. É o que costumo chamar de passivo do sistema. O sistema só cresce, nunca diminui, tendo em vista que nada garante que essas palavras não sejam, algum dia, ressuscitadas pelo uso, afinal, como diz Bernard Cerquiglini “La vie des mots comporte des rebondissements surprenants” (A vida das palavras comporta reviravoltas surpreendentes). O exemplo de se ramiter, verbo a ser incluído na já citada edição 2024 do Larousse, é uma dessas reviravoltas, que nos enche de alegria e de esperança, nestes tempos em que a segregação vem camuflada de discurso de inclusão: se ramiter é, nada mais, nada menos, tornar-se novamente amigo. Além do sentido e do dinamismo das palavras, o dicionário nos ensina que a amizade é mais importante do que qualquer outra coisa.