“⏤ Je suis celui qui vient des profondeurs. Mylord, vous êtes les grands et les riches. C’est périlleux. Vous profitez de la nuit. ...

Carta a Alaurinda Romero

victor hugo homem que ri
“⏤ Je suis celui qui vient des profondeurs. Mylord, vous êtes les grands et les riches. C’est périlleux. Vous profitez de la nuit. Mais prenez garde, il y a une grande puissance, l’aurore. L’aube ne peut être vaincue. Elle arrivera. Elle arrive. Elle a en elle le jet du jour irrésistible.”
Gwynplaine a seus pares na Câmara dos Lordes, p. 738-9
“et la vie a toujours pour commencement un mariage d’âmes consonmmé en pleine innocence, par deux petites virginités ignorantes. Déa, c’était son épouse, car ils avaient le même nid sur la plus haute branche du profond arbre Hymen.”
Reflexão de Gwynplaine sobre seu amor a Dea, p. 763


Caríssima Alaurinda,

Tenho plena convicção do horror inicial que O homem que ri, de Victor Hugo, pode causar nas almas sensíveis. Mais do que isso, os dois capítulos iniciais, que Hugo chama “Dois capítulos preliminares”, e que se desdobram em 10 subcapítulos, são um desafio para o leitor, embora Hugo saiba como os conduzir de modo magistral. É uma introdução necessária, Alaurinda, tendo em vista que o primeiro dos capítulos, que conta com 4 subcapítulos, é intitulado Ursus, o nome de um dos personagens centrais da trama. Claro, Ursus é apresentado como um misantropo, que troca de identidade com o lobo, com que vive, por ele chamado Homo (ser humano, homem, em latim). Acredito que isto intriga o leitor, mas o estilo de Hugo já nos instiga a curiosidade,
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Homo e Ursos ▪ Ilustração de Daniel Vierge para a edição de O homem que ri de 1885
ao abrir o romance com uma frase que nos cativa (Obras completas: Romance III, O homem que ri, Paris, Robert Laffont, 2002. Primeira parte, O mar e a noite – Dois capítulos preliminares, Capítulo I, subcapítulo I, p. 351, tradução nossa):

“Ursus e Homo eram ligados por uma amizade estreita. Ursus era um homem, Homo era um lobo.”

Sentimo-nos estranhos diante dessa situação, Alaurinda, em que um homem prefere trocar de lugar com um animal. A misantropia de Ursus, no entanto, se dá por dois motivos. O primeiro, porque ele conhece bem os homens e sabe o quanto o ser humano é mais feroz do que os animais, como o lobo que ele cria. O segundo motivo é para poder esconder o grande humanismo que existe no personagem e que vamos descobrindo aos poucos. Ursus protege-se contra o homem, para não expor a sua vulnerabilidade diante da ferocidade de que o homem é capaz. O trocadilho com a frase Hobbes – “O homem é o lobo do homem” – é inevitável. Na realidade, além de humanista, Ursus é um misto de saltimbanco, ventríloquo, médico itinerante e filósofo.

O segundo capítulo, que consta de seis subcapítulos, chama-se Os comprachicos (optei, Alaurinda, por deixar o nome original, como faz Hugo, Les comprachicos, em lugar de traduzir por Os compracrianças). Se estranhamos a personalidade de Ursus, odiamos a dos comprachicos, esse bando “residual de águas imundas” (Primeira parte, Capítulo II, Os Comprachicos, subcapítulo IV, p. 372), cuja ocupação, como bem diz o nome é fazer o odioso comércio de crianças.
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D. Vierge, 1885
Mas não param por aí as suas atividades. As crianças são compradas para se tornar um brinquedo e uma fonte de dinheiro para os adultos, sendo submetidas a modificações e mutilações corporais (p. 365):

“Uma criança destinada a ser um brinquedo para os homens, isto existiu. (Ainda existe hoje).”

É desse comércio repugnante que se origina o personagem Gwynplaine. Tendo sido, em criança, mutilado pelos comprachicos, o personagem de nossa história, nomeado, para efeitos de propaganda circense, como “o homem que ri”, dará título ao romance. É, sem dúvida, Alaurinda, um choque para todos saber o que seres humanos podem fazer contra outros seres humanos, motivados apenas pelo lucro. Choque maior, quando sabemos que a crueldade e a tortura, já abominável contra adultos, se faz de modo indiscriminado contra crianças.

Victor Hugo, sempre combativo, não se isenta, contudo, da denúncia a essas e outras atrocidades. Em primeiro lugar, ele mostra o caráter atroz do homem, “mais feroz do que a própria fera; mais atroz do que a áspide, o dragão, o lince e o basílico” (Capítulo II, subcapítulo V, p. 371). Hugo não nos deixa na mão, ele se posiciona e a sua posição redime a trama de seu romance, ao repudiar o terrível mal que se faz contra uma criança, quem quer que ela seja, repúdio que ressoa com a força do anátema (Primeira Parte, Livro II, Capítulo XVIII, O recurso supremo, p. 439):

D. Vierge, 1885
“O que é feito contra uma criança é feito contra Deus.”

De uma criança abandonada à própria sorte, em meio a uma tempestade, no inverno, que encontra outra criança, esta de peito, aninhada nos braços da mãe morta, ambas, sem nome, sem identificação e sem perspectiva – “Os molambos não têm sexo” (Livro primeiro, A noite menos negra do que o homem, Capítulo I, A ponta sul de Portland, p. 379) –, Gwynplaine tem o acolhimento de Ursus, que batiza a pequena sobrevivente com o nome de Dea, deusa. Eis uma das grandezas do romance, Alaurinda. O misantropo é, na realidade, um homem que sacrifica a sua solidão voluntária para cuidar de duas crianças, que não são de sua obrigação: Gwynplaine, com um riso perpétuo, causado pela mutilação sofrida – “Era um riso automático, e ainda mais irresistível porque era petrificado” (Parte II, Livro II, Gwynplaine e Dea, Capítulo I, Onde se vê o rosto daquele de que apenas se viram as ações, p. 532) –; Dea, cega, por causa da exposição ao frio intenso, antes de ser recolhida por Gwynplaine. Eles formarão, Alaurinda, não apenas um par de saltimbancos da troupe de Ursus, mas, talvez, o mais lindo par amoroso da literatura, com um amor puro e sem pieguismo, apesar da miséria que os cercava (Capítulo II, Dea, p. 535-6):

“Se a miséria humana pudesse ser resumida, ela teria sido por Gwynplaine e Dea. Eles pareciam ter nascido, cada um, em um compartimento do sepulcro; Gwynplaine no horrível, Dea no escuro. Suas existências eram feitas de trevas de espécies diferentes tomadas nos dois lados formidáveis da noite. [...] Dea tinha um véu, a noite, e Gwynplaine tinha uma máscara, sua face. [...] Dea era a proscrita da luz; Gwynplaine era o banido da vida. [...] Eles estavam em um paraíso.
Eles se amavam.
Gwynplaine adorava Dea, Dea idolatrava Gwynplaine.
⏤ Tu és tão belo! dizia-lhe ela.”
D. Vierge, 1885
E Hugo arremata, no capítulo seguinte, Não tem olhos, mas vê, (Oculos non habet, et videt, no original, em latim), um belo capítulo, diga-se de passagem: “É que Dea, cega, percebia com a alma” (p. 537).

O tormento porque Gwynplaine passa, com o desejo pela condessa Josiane, é momentâneo, devido à confusão em que ele se encontra, por ter sido descoberta a sua origem nobre, de que ele vivia na completa ignorância. Tornado lord Fermain Clancharlie, barão Clancharlie e Hunkerville, reintegrado na posse de bens e de privilégios que ele nem sonhava ter, em nenhum momento, Alaurinda, Gwynplaine titubeia e se deixa levar pelo luxo e pelos excessos que a nova vida lhe poderá proporcionar. Ele tem consciência de que o luxo e o desperdício, que cercam a vida da nobreza, vêm da exploração da miséria, provocando uma exclusão e uma segregação social, na forma mais abjeta de escravidão que pode existir: a escravidão sob uma falsa liberdade.

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D. Vierge, 1885
Mais uma vez, Hugo dá uma demonstração de seu grande talento de escritor, dividindo a ação de Gwynplaine, em dois momentos: o da firmeza das suas posições, em relação à consciência da miséria explorada pelos poderosos, e o amor, acima de todas as coisas, a Dea. São momentos sublimes, Alaurinda, que terminam por justificar a narrativa crua das atrocidades iniciais.

Não quero me alongar em detalhes, Alaurinda, para não tirar dos leitores o gosto da descoberta. Direi apenas algumas coisas mais a respeito desses dois momentos. Ambos acontecem na segunda parte do Romance. O primeiro deles no Livro VIII, Capítulo VII, As tempestades de homens, piores do que as tempestades de oceanos. Gwynplaine, em sua única sessão na Câmara dos Lordes, vota contra o aumento de cem mil libras esterlinas, como provisão anual, em favor do príncipe, marido da rainha. E expõe os seus motivos, diante da admiração de todos os outros lordes. Trata-se de um admirável discurso, humanista e inflamado, que lembra, Alaurinda, os discursos de Hugo na Assembleia Nacional, conforme podemos ver em Escritos políticos. Não há como negar certa simbiose entre o escritor e seu personagem, tendo em vista, sobretudo, que se trata de um romance escrito no exílio, momento em que a França estava sob o poder discricionário de um imperador fabricado, Napoleão III, que, para Hugo, era apenas “Napoléon, le petit”.

Gwynplaine lembra aos lordes que “o gênero humano existe” e que se “o gênero humano é uma boca”, ele é “o seu grito” (p. 739), pronto para denunciar o privilégio e “o seu filho,
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D. Vierge, 1885
o abuso”. Seria cansativo tentar recortar trechos do discurso incisivo de Gwynplaine. Eu teria que reproduzir todo o capítulo, Alaurinda, de que não se perde uma única sílaba. Escolhi, no entanto, uns poucos fragmentos, que dizem com veemência sobre a miséria humana.

1
Não se mede o sofrimento com palavras, mas vivenciando-o:

“O sofrimento, não, não é uma palavra, senhores felizes. A pobreza, nela eu cresci; o inverno, nele eu tremi; a fome, dela eu provei; o desprezo, eu o sofri; a doença, eu a tive; a vergonha, eu a bebi. E a regurgitarei diante de vós, e este vômito de todas as misérias salpicará vossos pés e vos incendiará” (p. 739).

2
Os nobres vivem fora do mundo e da realidade:

“Ah! tudo é terrível. Uma noite, uma noite de tempestade, pequenino, abandonado, órfão, só na criação desmesurada, eu fiz a minha entrada nessa obscuridade que vós chamais a sociedade. A primeira coisa que eu vi, foi a lei, sob a forma de um castigo; a segunda, foi a riqueza, a vossa riqueza, sob a forma de uma mulher morta de frio e de fome; a terceira, foi o devir, sob a forma de uma criança agonizante; a quarta, foi o bom, o verdadeiro e o justo, na figura de um vagabundo, não tendo por companheiro e por amigo, senão um lobo” (p. 739-40).

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D. Vierge, 1885
3
A miséria é cruel, principalmente com as crianças e as mulheres:

“Tomem ciência desses infortúnios. Há seres que vivem na morte. Há meninas pequenas que começam aos oito anos pela prostituição e que terminam aos vinte anos pela velhice” (p. 741).

4
Aumento dos privilégios, aumento da miséria:

“Mylords, os impostos que vós votais, sabeis quem os paga? Aqueles que expiram. Ai de mim! Vós vos enganais. Vós palmilhais o mau caminho. Vós aumentais a pobreza do pobre para aumentar a riqueza do rico” (p. 741).

5
O privilégio e o abuso, mutiladores da sociedade:

“Eu encarno tudo. Eu represento a humanidade tal qual seus mestres a fizeram. O homem é um mutilado. O que me fizeram, fizeram ao gênero humano. Deformaram-lhe o direito, a justiça, a verdade, a razão, a inteligência, como a mim os olhos, as narinas e as orelhas; como a mim, puseram-lhe no coração uma cloaca de cólera e de dor, e sobre a face uma máscara de contentamento” (p. 745).
F. Flameng, 1880s
Trata-se de discurso dos mais tocantes, por sabermos de quem parte, Alaurinda. Não só da vivência do personagem, mas da vivência do autor e de suas batalhas políticas contra a opressão e contra a exploração do ser humano. Este livro, O homem que ri, é, a meu ver, de leitura obrigatória e complementar a Os miseráveis. Sim, complementar, sobretudo, porque a única redenção possível é aquela que se faz pelo amor, o que não nos exime de lutar contra os privilégios imorais de que temos diariamente notícia, pagos com o dinheiro público.

É esta redenção pela grandeza da alma e do amor que vemos exposta no segundo momento importante da vida de Gwynplaine. Toda a crueza que se expõe da vida dos infelizes, excluídos e despossuídos, encontra, primeiro na consciência de Gwynplaine (“Nenhum juiz é minucioso como a consciência instruindo o seu próprio processo”, p. 756), depois, no seu amor por Dea, a sua redenção. Amor espiritual, para além do corpo e do desejo terrenos. Hugo, no meu ponto de vista, Alaurinda, compõe um dos maiores poemas de sua vida, em Resíduo (Segunda Parte, Livro IX, Capítulo II, p. 753-765), cuja síntese poderia ser o trecho abaixo, na oposição entre corpo e espírito:

“A sociedade é a madrasta. A natureza é a mãe. A sociedade é o mundo do corpo; a natureza é o mundo da alma. Uma chega ao esquife, ao caixão de pinho, na cova, aos vermes da terra, e acaba lá. A outra chega de asas abertas, à transfiguração na aurora, à ascensão nos firmamentos, e lá recomeça” (p. 762).
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Victor Hugo, em gravura de Auguste Rodin, 1885 ▪ Metropolitan Museum, Nova York
O remate, no entanto, Alaurinda, encontra-se nos capítulos III e IV da conclusão (O paraíso reencontrado cá embaixo e Não. Lá em cima), intitulada, como a primeira parte do romance, O mar e a noite. Diante da impossibilidade de fazer alguns recortes, que jamais seriam fiéis à emoção do texto, Alaurinda, deixo a leitura integral para o deleite dos leitores. Reservo-me apenas o direito de fazer minhas as palavras de Hugo, ao narrar a emoção do reencontro entre Gwynplaine e Dea. Reencontro que retrata toda a sensibilidade desse poema amoroso que une os dois personagens (Conclusão, Capítulo III, O paraíso reencontrado cá embaixo, p. 777):

“Há falas que são, a um só tempo, palavras, gritos, soluços. Todo êxtase e toda dor aí se fundem e explodem em confusão. Elas não têm qualquer sentido, mas elas dizem tudo”.

Finalizo, Alaurinda, pedindo desculpas por tomar o seu tempo, mas sabendo a leitora incansável e sensível, que você é, não poderia jamais deixar de compartilhar a beleza tão hugoana, que há no grotesco e no sublime de Gwynplaine, “o homem que ri, cariátide do homem que chora” (Livro IX, Capítulo II, Resíduo, p.759).

Abraços,
Milton

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